Original de TENNESSEE WILLIAMS
Adaptação Livre de CARLOS FARIELLO
Adaptação Livre de CARLOS FARIELLO
* PEÇA EM DOIS ATOS *
Dedicada a Claudio Chakmati
PERSONAGENS (Por Ordem de Entrada)
SRA. WIRE (*)
Senhoria rabugenta de uma casa de cômodos em Tennessee, sul dos Estados Unidos, onde se passa a ação.
ELOI DEBRENET (**)
Jovem triste e desgostoso com a vida. Figura frágil, de aparente comportamento moral irredutível. Trabalha nos Correios.
AMANDA DEBRENET (**)
Mãe de Eloi. Pessoa de bom coração. Foi abandonada pelo marido. Obcecada por limpeza.
JAKE MEIGHAN (+)
Jovem forte, rústico e sem cultura que trabalha no campo como descaroçador de algodão.
FLORA MEIGHAN (+)
Esposa de Jake. Jovem, inocente e bonita. Típico anjo-sedutor, tem uma relação sado-masoquista com o marido.
SRTA. HARDWICKE-MOORE (*)
Prostituta velada. Cria um mundo de sonhos e passa a acreditar neles.
ANTON TCHECOV (*)
Alcoólatra. Poeta e escritor fracassado, que também acredita poder viver de fantasias.
LUCRÉCIA COLLINS (#)
Senhora de meia idade que ainda acredita ser uma menina. Um amor frustrado, fruto de sua imaginação, a enlouquece literalmente.
VICARRO (+)
Homem viril. Ítalo-americano. É o superintendente do Sindicato dos Algodoeiros.
DR. WHITE (#)
Médico psiquiatra da Srta. Collins.
LEGENDA
Os personagens pertencem às seguintes obras de Tennessee Williams:
(*) A DAMA DA BERGAMOTA (“The Lady Of Larkspur Lotion”)
(**) AUTO DA FÉ (”Auto Da Fe”)
(+) 27 VAGÕES DE ALGODÃO (“Twenty-Seven Wagons Full of Cotton”)
(#) RETRATO DE UMA MADONA (“Portrait Of A Madonna”)
ATO I
1946. Pós guerra. Fim de tarde, início da noite. Grande sala de uma velha e decadente casa de cômodos em Tennessee, sul dos Estados Unidos. Em cena Sra. Wire, a velha senhoria, tira a mesa do jantar onde ainda permanecem Amanda e seu filho Eloi, dois dos seus inquilinos. Na varanda, o poeta alcoólatra Anton traga um cachimbo enquanto aprecia as estrelas transfigurando o céu. Jake, outro inquilino, desce as escadas disfarçadamente, pega um galão de querosene no armário e sai pela porta de entrada da casa. Sua esposa, Flora, imediatamente aparece na escada.
FLORA
Jake! Perdi minha bolsa de pelica branca. (Desce mais um lance). Jake, veja se não a deixei cair no banco da caminhonete! (Indo em direção à porta de tela) Jake... Jake! (Para a Sra. Wire) Sra. Wire, a senhora sabe para onde foi Jake?
SRA. WIRE (ríspida)
Isso é uma casa de cômodos, menina. Eu apenas alugo quartos. Não sou paga para ser babá do marido de ninguém!
AMANDA (ajudando a tirar a mesa)
Ora, Sra. Wire, Flora só lhe fez uma pergunta... (Para Flora) Não estou bem certa, meu bem, mas acho que Jake saiu.
Flora sobe. Anton adentra a sala e senta-se na velha cadeira de balanço.
SRA. WIRE
Tem graça isso!? Além de ter que vigiar a madona louca do quarto 3 e (olhando para Anton) o poeta alcoólatra do 5, eu vou lá saber por onde anda o marido da outra?! Nem prá jantar desceram. (Maliciosa) Imagino o que tanto fazem trancados o tempo todo no quarto!!!
AMANDA
A senhora não devia falar assim, Sra. Wire. Ao menos Flora tem uma qualidade insubstituível: é uma moça de grande limpeza!
SRA. WIRE
Limpeza, hein? Sei...
Sra. Wire vai saindo quando entra a Srta. Hardwicke-Moore pela porta da frente e, fingindo não ver ninguém, dirige-se direto à escada.
SRA. WIRE
Ah, Srta. Hardwicke-Moore, eu preciso mesmo lhe falar...
SRTA. MOORE (em pânico)
Oh, Sra. Wire, eu é que tenho algo a lhe dizer!
SRA. WIRE (relaxada e pesadona)
Ah, sim? E sobre o quê?
SRTA. MOORE (em tom áspero e afetado)
Sra. Wire, lamento lhe dizer que não considero “baratas” o tipo mais desejável de companheiras de quarto, não está de acordo?
SRA. WIRE (despachada)
Baratas, hein?
SRTA. MOORE (quase numa respiração só)
Sim, exatamente. Não tive muita experiência com baratas, mas as poucas que vi eram do tipo “pedestre”, daquelas que “andam”. Estas, Sra. Wire, parecem ser do tipo “voadoras”! Fiquei chocadíssima, aliás fiquem mesmo foi atônita quando uma delas levantou vôo e começou a zumbir pelo ar, girando e girando em círculos e só não esbarrou em mim por poucos centímetros. (Chorosa) Ah, Sra. Wire, sentei-me à beira da cama e me debulhei em lágrimas. Eu fiquei tão chocada e desgostosa! Imagine só, baratas voadoras que eu jamais imaginei existirem, zumbindo em voltas e mais voltas ali, na minha frente...
SRA. WIRE (cortando-a)
Ora, não vejo razão para tanta surpresa por causa de simples baratas voadoras. Elas estão em toda parte, até mesmo nos bairros mais elegantes... Mas o que eu ia dizer era que...
SRTA. MOORE
Isso pode ser verdade, Sra. Wire, mas devo lhe dizer que tenho horror a baratas, até das mais comuns, e estas que voam então... Se vou continuar a morar aqui, essas baratas voadoras têm que desaparecer. E imediatamente!
SRA. WIRE
E como sugere que eu faça para que essas baratas voadoras deixem de voar e entrar pelas janelas, hein? De qualquer modo não era sobre isso que eu...
SRTA. MOORE
Eu não sei como, Sra. Wire, mas certamente há de haver uma maneira. Tudo o que sei é que temos que nos livrar delas antes que eu durma aqui mais uma noite. Porque se eu acordar de madrugada e encontrar umazinha que seja sobre minha cama eu posso ter uma síncope. Juro por Deus, eu morrerei de convulsões!
SRA. WIRE
Vai me desculpar pela franqueza, Srta. Hardwicke-Moore, mas a senhora é o tipo de pessoa que vai morrer mesmo devido ao tipo de vida que leva... e todo mundo aqui sabe muito bem qual é! Não vai ser por causa de barata, não...
ELOI (num rompante, exaltadíssimo e revoltado)
A senhora não tem mesmo o menor respeito com quem quer que seja, não Sra. Wire? Este muquifo está longe de ser um abrigo familiar, mas isso já é demais! Se a senhora é ou anda tão infeliz de sua vida é porque colhe o que sempre plantou. Além do mais, Sra. Wire, um pouco mais de caridade em relação à Srta. Collins do quarto 3 não lhe faria mal algum. Louca ou não ela também lhe paga o aluguel devido!
SRA. WIRE (olhando para Eloi com desprezo, falando com Amanda)
Cuide de seu filho, Amanda, ele não sabe o que diz. (Para Eloi) E você, moleque, cresça e crie-se!
Sra. Wire sai para a cozinha, Srta. Moore sobe as escadas rapidamente.
AMANDA (para Eloi, em tom absolutamente materno)
Por quê falou com tamanha brutalidade com a Sra. Wire?!
ELOI
Ela me dá nos nervos.
AMANDA
Você implica com todos os hóspedes dessa casa, Eloi.
ELOI
Ela não é de confiança. Desconfio que entra no meu quarto.
AMANDA
E o quê te faz pensar assim?
ELOI
Achei sinais evidentes.
AMANDA
Pois bem, pois posso afirmar que ninguém entrou no seu quarto.
ELOI
Alguém entra no meu quarto e mexe nas minhas coisas. Quem poderia ser?
AMANDA
Ninguém mexe em coisa alguma no seu quarto, Eloi.
ELOI
O quarto é meu, não quero ninguém lá dentro.
AMANDA
Você sabe muito bem que só eu entro no seu quarto. E assim mesmo porque preciso fazer a limpeza. Você sabe, nesta casa cada qual limpa seu quarto.
ELOI
Eu não quero que o limpem!
AMANDA
Quer que o quarto fique imundo?
ELOI
Deixe que eu o limpo quando for preciso.
AMANDA (após uma breve pausa)
A gente pode até pensar que você está escondendo alguma coisa, meu filho!
ELOI
E o que é que eu havia de esconder?
AMANDA
Não sei... E é por isso mesmo que eu acho tão esquisito que se oponha que até mesmo sua mãe entre no seu quarto!
ELOI
Todo mundo quer ter um pouco de sossego, mãe.
AMANDA
E o seu sossego deve ser sagrado, né Eloi?
ELOI
Hum, hum...
AMANDA
E eu devo permitir que a sujeira se acumule lá dentro!?
ELOI
E o quê entende por “sujeira”?
AMANDA (tristemente)
A poeira e a desordem que você haveria de viver se sua mãe não entrasse lá para fazer a limpeza.
ELOI
Ora, sua vassoura e seu espanador não haveriam de limpar grande coisa, além do mais até o ar desse bairro é sujo!
AMANDA
Talvez não seja tão limpo quanto devia. Se, pelo menos, essa casa fosse minha, as coisas seriam bem diferentes. Mas, na medida do possível, gosto de cortinas limpas nas janelas, roupa de cama bem lavada; gosto das coisas imaculadas, sem uma mancha sequer!
ELOI (animado)
Então por quê não nos mudamos para a parte nova da cidade onde tudo é mais limpo?
AMANDA
Mudar, Eloi?
ELOI
Não é você que só fala em pureza? Todo o tempo e só pureza, pureza? No entanto, insiste em ficar no meio da corrupção!
AMANDA
Não insisto, não senhor. Fico aqui porque preciso. Desde que seu pai nos deixou, Eloi, e nós perdemos nosso lar, dois quartos numa casa de cômodos é tudo o que podemos pagar. Quanto à corrupção, nunca permiti que me atingisse!
ELOI
Mas ela te atinge, mãe. Não podemos deixar de respirá-la. Ela entra pelas nossas ventas, chega até o nosso sangue!
AMANDA
Acho que é você que implica com tudo aqui. Você nunca diz direito o que pensa, Eloi. Desvia sempre o assunto, exalta-se, deixa a gente nervosa sem a menor razão.
ELOI
Já agüentei o que podia, mãe.
AMANDA
O quê fazer, então, meu Deus?
ELOI
Mudar daqui! Até essa minha asma num ar mais puro, na parte alta da cidade, haveria de melhorar! Você não imagina o quanto já fomos contaminados até agora.
AMANDA
Contaminados pelo quê, Eloi?
ELOI
Pelo brejo mal cheiroso em que vivemos. Por este bairro infecto. Toda espécie de degenerência imaginável brota dessas ruas: não a dois passos daqui, mas aqui mesmo, nesta casa...
AMANDA
Acho que você está exagerando um bocadinho, Eloi.
ELOI
Você lê os jornais, ouve as conversas dos outros, passa pelas janelas abertas e não pode deixar de ter consciência do que vai por aí! Ainda a noite passada, uma mulher foi horrivelmente desfigurada. Um homem quebrou uma garrafa e lanhou a cara dela com os cacos!
AMANDA
Se isso acontece com essa gente, é porque elas levam uma vida desregrada.
ELOI
Todas as noites cometem-se crimes horríveis nos jardins públicos.
AMANDA
Nem todos os jardins públicos ficam neste bairro.
ELOI
Nem todos os jardins públicos ficam na decadência que este bairro é. Aqui está o ponto de partida, o foco infeccioso, e o que se espalha desse foco penetra pelos poros capilares e pelas veias. E, levada pelo sangue, contamina nossos tecidos. Nada escapa à contaminação!
AMANDA
Que é isso, Eloi? Você está usando uma linguagem violenta demais!
ELOI
É que eu sinto violentamente!
AMANDA
Você não deve falar como um fanático!
ELOI
E você, mãe, não pretende reagir?
AMANDA
Você sabe o quanto eu reajo. Mas tudo tem que estar dentro de certos limites.
ELOI
Limites, limites... A gente não pode ficar dentro de “certos limites” quando o que se quer é dar cabo do mal. Esta cidade deveria ser arrasada. Derrubada e demolida!
AMANDA
Não creio que isso fose possível.
ELOI
Possível ou não, é a minha opinião. Ela não tem mais cura. A limpeza moral já lhe é utópica.
AMANDA
Então permita que lhe diga, Eloi, mas nesse ponto você está errado.
ELOI
Pelo contrário, mãe, eu tenho boas razões para pensar como penso.
AMANDA
O que quer dizer com isso?
ELOI
As Escrituras... estão cheias de casos de cidades completamente destruídas pela justiça do fogo, por se terem tornado ninhos de corrupção e de vícios.
AMANDA
Eloi... Eloi...
ELOI (quase gritando)
Que seja condenada e purificada pelo fogo!
Nesse exato momento, ouve-se o barulho de uma enorme explosão ao longe. Todos se assustam e correm para a janela e para a varanda.
SRA. WIRE
Que barulho horrível foi esse?
AMANDA
Parece que uma bomba explodiu!
SRA. MOORE (descendo, correndo)
Meu Deus, quê susto!
SRA. WIRE
Vejam, um incêndio ao longe!
AMANDA
Onde será que é?
SRA. WIRE
Parece ser no Sindicato dos Algodoeiros. Vamos lá ver!
Todos saem, exceto Eloi. Imediatamente, Flora desce, assustada.
FLORA
O quê foi isso?
ELOI
Parece que foi uma explosão. A senhora não vai lá ver?
FLORA
Oh... eu não posso... Jake não está... O que acha que está incendiando?
ELOI
O Sindicato dos Algodoeiros.
FLORA
Deus...
ELOI
Condenado e purificado pelo fogo! (Sai)
FLORA (para si)
Jake...!
Pausa. Música. Luz. Ouve-se um carro parando. Flora vai até a janela. Depois de alguns instantes, Jake adentra a sala casualmente, com passo lento.
FLORA
Sim, senhor!
JAKE
O que é que há, hein?
FLORA
Nunca conheci um ser humano que fosse tão mesquinho e descabeçado. Você some de casa sem dizer uma palavra!
JAKE
E o que há de tão grave nisso?
FLORA
Eu lhe disse que estava ficando com dor de cabeça e que precisava de remédio. Você disse: “Vista-se e vamos para a cidade agora mesmo”. Eu me vesti, mas não conseguia achar minha bolsa de pelica branca. Daí me lembrei que poderia tê-la deixado no banco da caminhonete. Vim pegá-la. E cadê você? Tinha sumido, sem uma palavra. Aí houve essa explosão. Ouve meu coração! (Jake põe a mão no seu peito de forma bastante sensual, cheio de segundas intenções, como que querendo fazê-la desistir do assunto. Flora revira os olhos, se excitando) Tá vendo? Tá sentindo? Batendo como um martelo. Como eu poderia saber o que havia te acontecido? (Pausa. Excitação total. De repente, ela grita) Você não estava aqui, simplesmente desapareceu!
JAKE
Cale a boca! (Empurra-a pela cabeça, violentamente)
FLORA (pasma)
Como é que você faz isso?
JAKE
Eu não gosto do jeito como você berra. Tudo o que diz é berrando!
FLORA
O que está acontecendo com você?
JAKE
Nada, ora...
FLORA
Então, por quê foi embora? Prá onde você foi?
JAKE
Uai... eu nem saí...
FLORA
Claro que saiu... Você diz que não quando eu acabei de ver e ouvir você voltar. Você pensa que eu sou alguma desmiolada?
JAKE
Se você tivesse algum miolo, ficaria de boca fechada.
FLORA
Não fale assim comigo!
JAKE (indo para a escada)
Vem prô quarto!
FLORA
Ah, mas não vou mesmo! Egoísta e sem-consideração é o que você é.
JAKE (agarrando Flora pela pescoço, com as duas mãos)
Olha aqui, escuta o que eu vou te dizer: eu não saí prá lugar algum.
FLORA (cínica)
Ah, tá bom.
JAKE
Eu não saí desta casa. Entrou na sua cabecinha?
FLORA
Jake, você está completamente louco.
JAKE
Eu não saí da garagem dessa casa desde a hora do jantar. Eu estava... consertando a caminhonete.
FLORA
É claro que saiu.
Jake torce o pulso dela, violentamente.
FLORA
Aiiiiiiiiii... Pára, pára, pára...
JAKE (sádico)
Onde é que eu estava desde a hora do jantar?
FLORA
Aqui, aqui, aqui... Pelo amor de Deus, larga meu braço...
JAKE
Onde é que eu estava?
FLORA
Aqui em casa... na garagem...
JAKE
Fazendo o quê?
FLORA (gemendo de dor)
Jake...
JAKE
Fazendo o quê?
FLORA
Solte-me... por Deus, Jake... Me larga... páre de torcer, você vai quebrar meu pulso...
JAKE (sorrindo, entredentes)
Fazendo o quê? O que eu estava fazendo desde a hora do jantar?
FLORA (gritando)
Diabo, como eu posso saber?
JAKE
Você sabe que eu estava na garagem, consertando a caminhonete. Enfiou isso na sua cabeça oca agora?
FLORA (chorosa)
Me solta!
JAKE
Entendeu o que eu disse?
FLORA
Entendi. Me larga...
JAKE
Então o que eu estava fazendo?
FLORA
Consertando a caminhonete... na garagem... Por Cristo!
Ele a solta, ela choraminga e esfrega o pulso, mas a impressão é que a experiência não foi totalmente sem prazer para ambos. Ele agora puxa-lhe a cabeça para trás e lhe dá um longo e molhado beijo na boca. Clima super sensual.
JAKE
Você é minha queridinha.
FLORA
Hummm... dói...
JAKE
Dói?
FLORA
Dói.
JAKE
Quer um beijinho?
FLORA
Hummmm....
JAKE (beijando-a)
Sarou?
FLORA
Hum, hum...
JAKE
De quem é essa coisa mais querida?
FLORA (manhosa)
Hum, dói...
JAKE (dando beijinhos sonoros no pulso dela)
Um beijo.
FLORA
Pára, bobo...
JAKE
Sabe o que eu faria se você fosse um papo-de-anjo, grandão e amarelo, com muita calda?
FLORA (dando risadinhas)
Ahhhhh, páre Jake...
JAKE
Te devorava, te devorava toda. Te comia todinha!
FLORA (pedendo o fôlego)
Jake...
JAKE (abraçando-a mais e mais)
Hummmm...
FLORA
Não faça cócegas!
JAKE
Agora me responda só uma coisinha.
FLORA
O quê?
JAKE
Onde eu estava na hora do jantar?
FLORA
Tinha saído com a caminhonete.
JAKE (bravíssimo, agarrando-a novamente pelo pulso)
Onde eu estava na hora do jantar?
FLORA
Na garagem, na garagem...
JAKE
Fazendo o quê?
FLORA
Consertando a caminhonete. Oh, Cristo! Jake, me solte.
JAKE (soltando-a)
Dói?
FLORA (choramingando)
Dói.
JAKE
Agora você sabe onde eu estava e o que estava fazendo desde a hora do jantar.
FLORA
Sei.
JAKE
Se alguém perguntar?
FLORA
Quem vai perguntar?
JAKE
Não importa quem vai perguntar. Você só tem que saber a resposta.
FLORA (didaticamente)
Era aqui, na garagem desta casa, que você estava. Você, com certeza, não saiu para lugar algum e, inclusive, ficou bastante surpreso quando soube que pegou fogo no Sindicato...
Jake lhe dá um tapa no rosto com toda a violência.
FLORA
Jake!!!
JAKE
Tudo o que você disse está certo, mas não tire conclusões.
FLORA
Conclusões?
JAKE
Uma mulher como você não foi feita para tirar conclusões. (Mudando o tom) Foi feita para ser abraçada e apertada!
FLORA (infantilmente)
Jake...
JAKE (seduzindo-a)
Minha mulherzinha...
SRTA. COLLINS (lá de cima, grita em off)
Ohhhh, Richard!
FLORA (se desvencilhando de Jake)
É a Senhorita Collins.
JAKE
Ah, essa louca agora... Vem, vamos para a caminhonete.
FLORA
Estamos indo ver o incêndio?
JAKE
Não, estamos indo à cidade comprar bebidas, pois estamos cheios de calor e sede.
SRTA. COLLINS (ainda em off)
Richard!!!
FLORA
Quem é Richard?
JAKE
Não importa. Provavelmente mais um fantasma da cabeça doente dela. Vamos embora antes que ela apareça.
FLORA
Não posso ir. Perdi minha bolsa de pelica branca.
JAKE (puxando-a para fora)
Está no banco da caminhonete onde você deixou.
Saem. Srta. Collins aparece do alto da escada, descendo apressadamente em direção ao telefone.
SRTA. COLLINS
Não, não, não... Não me importa se toda a Igreja ouvir isso. (Pega o telefone e disca alguns números) O chefe de polícia, eu preciso falar com o chefe. Oh, depressa, por favor... Perdeu todo o respeito, todo o... Sr. Abrams, não quero nenhum repórter escutando isso, mas algo horrível está acontecendo aqui na casa da Sra. Wire. Sim, é a Srta. Collins, Sr. Abrams... Incêndio? Quê incêndio? Não, não sei nada sobre isso. Sr. Abrams, eu me abstive de fazer qualquer reclamação por ora devida às minhas ligações com a Igreja. Eu costumava ser assistente do superintendente da escola dominical e uma vez, obtive a principal classe. Eu os ajudei a fazer o espetáculo de Natal. Fiz o vestido da Virgem-Mãe e as roupas para os reis magos. Sim, e agora isso aconteceu. Não sou responsável por isso mas, noite após noite, esse homem tem vindo ao meu quarto... cedendo a seus instintos! O senhor entende? Não uma vez, mas repetidamente, Sr. Abrams! Não sei se ele entra pela porta, pela janela, pela chaminé ou se existe uma entrada secreta na casa que ele conheça, mas o fato é que ele está aqui, no meu quarto, agora. Não posso forçá-lo a sair, preciso de alguma ajuda. Não, não é um ladrão, Sr. Abrams, é de uma família muito distinta de Webb, Mississippi. Mas essa mulher arruinou sua vida, destruiu seu respeito pelas mulheres... Sr. Abrams, Sr. Abrams... Oh, Deus, caiu a ligação... (Ela bate o telefone e grita) Richard!!!
Vai em direção à escada, subindo e chamando-o à medida em que a Sra. Wire, Amanda e Anton adentram a sala.
SRA. WIRE (atrás dela, pára no primeiro degrau)
Srta. Collins...
AMANDA
Foi para o quarto.
SRA. WIRE
Ah, ah, ah, era só o que faltava: ter um homem de carne e osso no quarto dela. Pura imaginação dessa insana!
AMANDA
O que o médico dela lhe disse para fazer?
SRA. WIRE
Para ficar aqui e não tirar os olhos dela até que ele chegue. Esse Doutor White, provavelmente imagine que eu não tenha mais nada na vida a fazer!
AMANDA
Meu Jesus!
SRA. WIRE
Já viu o quarto dela, Amanda? Parece uma aparição sagrada. Parece não ter sido limpo por uns 15 ou 20 anos. Provavelmente não foi mesmo!
AMANDA
Como chegou a ficar nestas condições?
SRA. WIRE
Tan-tan? Já deve ter nascido nestas condições.
ANTON
Não ela, Sra. Wire: o quarto!
SRA. WIRE
Ora, ela não deixa ninguém entrar!
AMANDA
Conheço mais alguém assim.
SRA. WIRE
A sujeira dos canos de sua pia desceu para o quarto abaixo e eu tive que fazer o encanador entrar com uma chve-mestra enquanto ela estava na Igreja. Louca de tudo!!!
ANTON
Quem? Ela?
SRA. WIRE
Fico imaginando se ela não teria algum dinheiro escondido. Muitos excêntricos escondem grandes somas de dinheiro em velhos colchões!
ANTON
É... cada um sabe contra quem se defender!
AMANDA
Sabemos que a Srta. Collins recebe um cheque mensal de pensão ou coisa assim. O Sr. Abrams os recebe e lhe entrega aos poucos. A Srta. Collins pensa – e com razão – que as damas do sul não nasceram para tratar de assuntos financeiros. Talvez, damas de toda a parte, não só as do sul!
SRA. WIRE
Eu trato de assuntos financeiros!
ANTON
Ela disse “damas”!
SRA. WIRE (Brava)
O quê disse, Anton?
ANTON (divertindo-se)
Nada, nada...
SRA. WIRE
De qualquer maneira, ultimamente os cheques pararam de vir.
AMANDA
Mesmo?
SRA. WIRE
A tal pensão se esgotou ou coisa assim...
AMANDA
E eu aposto que a senhora fica feliz em poder ajudar a Srta. Collins, não é mesmo, Sra. Wire? Atos de caridade desse gênero lhe caem como uma luva...
ANTON
De seis dedos!!!
SRA. WIRE
Ora, que caridade o quê? Eu recebo uma contribuição da Igreja para que ela permaneça aqui. Claro que ela não sabe: é orgulhosa que nem um pavão, apesar da aparência horrível... Bem, logo logo isso vai acabar!
ANTON (zombeteiro)
O quê? A contribuição ou a Igreja?
AMANDA (tristemente, após breve pausa)
Ela vai embora, não é?
SRA. WIRE
Daqui a dois dias, à tarde. Se Deus assim quiser!
AMANDA
Mas para onde?
SRA. WIRE
Para o asilo do Estado.
AMANDA
Oh, Pai! Há quanto tempo ela vive aqui?
SRA. WIRE
Há mais de 25, 30 anos... Desde antes mesmo de eu comprar a casa. Ela e a mãe eram inquilinas do ex-dono. Só queria saber se a tal mãe era tão louca quanto ela.
ANTON
Morando 25, 30 anos aqui, provavelmente eu e todos os seus hóspedes teremos o mesmo fim!
AMANDA (cortando-o para evitar climas)
Ela disse-me certa vez que tinha uma quantidade incrível de velhas revistas em seu quarto. Que costumava recortar anúncios das Sopas Campbell’s, aqueles que tem bonecas com cabeça de tomates gigantes. Soube que enchia um monte de álbuns com recortes, embrulhava-os com papel infantil e levava-os ao hospital de crianças no Natal e no Domingo de Páscoa: exatamente duas vezes por ano!
SRA. WIRE
Bonecas com cabeças de tomates? Hi... Maluca... é o que ela é!
ANTON (referindo-se, maliciosamente, à Sra. Wire)
O mundo é habitado por pessoas que são tão peculiares quanto ele!
SRA. WIRE
Bem... em dois dias, fim!
ANTON
Fariam tão melhor em deixá-la ir... e trancar alguns outros maníacos que andam por aí... soltos! Ela é inofensiva, eles não!
SRA. WIRE
Ela é... repulsiva. Mesmo imaginando que alguém, de fato, a estuprou!
AMANDA
Isso me causa pena. Não repulsa, Sra. Wire.
SRTA. COLLINS (voltando à sala)
Oh, Richard... (sem ar) Richard!!!
SRA. WIRE
Esqueça, Srta. Collins, não há nenhum Richard por aqui. Ora, ora, eu vou é cuidar da minha vida.
Sra. Wire sai, sendo seguida por Amanda.
ANTON
Alô, Srta. Collins, como tem passado?
SRTA. COLLINS
Oh, meu Deus, mamãe não havia me dito que tínhamos visita aqui em casa... (Auto-consciente, ela toca seus ridículos cachos de cabelo em formato de saca-rolhas, amarrados com fitas cor-de-rosa. Suas maneiras são de uma prima-dona do sul) Preciso pedir-lhe que desculpe minha terrível aparência. O senhor é o...
ANTON
Anton. Eu moro no quarto defronte ao seu. O de número 5. Sou escritor, lembra-se?
SRTA. COLLINS
Oh... as garotas do norte recebem um treinamento doméstico excelente, mas no sul nunca foi considerado essencial para uma garota ter qualquer coisa exceto beleza e charme. (Ela ri infantilmente e avança com graça para o sofá) Mamãe vai trazer um refresco daqui há pouco. Oh... (Meio tonta, ela toca a própria testa, enquanto senta-se no sofá)
ANTON (gentilmente)
Alguma coisa errada, senhorita?
SRTA. COLLINS
Oh, não, não, obrigada, nada... Minha cabeça está um pouco pesada. É que nesta época do ano, eu sempre fico um pouco... um pouco...
ANTON (completando)
Malárica?
SRTA. COLLINS
Exatamente. Malárica... é a palavra. Eu fico. (Afunda-se no sofá)
ANTON (apoiando-a)
Cuidado aí, senhorita.
SRTA. COLLINS
Obrigada... Eu não o havia notado ainda. O senhor... veio da Igreja?
ANTON
Não, Srta. Collins. Eu vivo aqui. Alugo um quarto da Sra. Wire... Como a senhorita!
SRTA. COLLINS
Oh... não entendo…
ANTON
A senhorita vem tendo alguma espécie de distúrbio ultimamente?
SRTA. COLLINS
Sim, sim... não é ultrajante? (Mudando o tom) Mas isso não deve passar adiante, entende? Quero dizer, o senhor não deve repetir isso para outras pessoas.
ANTON
Não, não... Eu não diria nada.
Sra. Wire passa pela sala.
SRTA. COLLINS (cochichando)
Nem uma palavra, por favor.
ANTON
O tal homem... Sr. Richard... ainda está aqui em seu quarto, Srta. Collins?
SRTA. COLLINS
Oh, não, não... ele já se foi agora...
SRA. WIRE (intrometendo-se, debochada)
Como ele saiu? Pelas janelas do quarto da senhorita?
SRTA. COLLINS (vagamente)
Sim...
SRA. WIRE
Conheci um homem que sabia fazer isso. Ia direto para cima, engatinhando pelo lado de fora do edifício. Era o “Mosca Humana”. Que bela manchete daria, não? “Jovem Dama da Sociedade Sulista Estuprada pelo Mosca Humana!”
ANTON (reprendendo-a)
Sra. Wire, por favor!
SRTA. COLLINS
Manchete? Não, seria tão humilhante...
ANTON
Não dê ouvidos a fuxicos, Srta. Collins, não vale a pena.
SRTA. COLLINS
Será que vão tirar retratos? Eu sempre trago um retrato de Richard comigo (tira uma foto do bolso). É do convescote de domingo no colégio. Eu costumava tomar conta dos pequeninos do Jardim da Infância; ele, dos meninos mais velhos. Certa vez, tomamos um vagão de locomotiva... de Webb para Crystal Springs. (Cobrindo os ouvidos infantilmente) Ah, como o apito assoprava. Assopraaaava!!! Assustou-me tanto! Então, ele pôs seus braços em volta dos meus ombros! (Mudando o tom) Ela estava lá também. Tirou-lhe o chapéu e o escondeu e eles... bem, eles... começaram a se acariciar... Eles realmente acariciaram um ao outro. Todos acharam uma sem-vergonhice... O Senhor... Anton, não é? Também acha que foi?
ANTON
Sim, sem dúvida!
SRTA. COLLINS
Este é o retrato. Comemos melancia perto da fonte e depois brincamos de jogos. Ela se escondeu em algum lugar e ele levou horas para encontrá-la. Estava escurecendo e ele não a tinha encontrado ainda. Todos murmuraram e escarneceram do fato até que, finalmente, eles voltaram. Juntos...! Ela, pendurada nos braços dele, como uma prostitutinha comum. Então, a Daisy Belle Houston gritou: “Gente, olha a traseira da saia de Evelyn!” Ela estava coberta de manchas de grama... Já ouviu algo mais ultrajante? Ela nem se tocou e ria como se fosse muito, muito engraçado. Inclusive estava até um tanto triunfante!
ANTON (olhando a foto)
Qual é ele, Srta. Collins?
SRTA. COLLINS
O alto, de camisa clara, que está segurando um dos meus cachos. Ele adorava brincar com eles...
ANTON
Um verdadeiro Romeu modelo 1900.
SRTA. COLLINS
Eu, na verdade, não deveria ter provocado esse distúrbio. Quando os guardas chegarem, terei que explicar tudo a eles. Mas o Senhor... Anton, não é? Pode entender meus sentimentos, não pode?
ANTON
Claro, claro, Srta. Collins...
SRTA. COLLINS (em tom professoral)
Quando os homens se aproveitam das escravas brancas comuns, as que fumam em público, há provavelmente alguma desculpa para isso... Mas quando ocorre a uma dama solteira e sempre completamente acima de qualquer suspeita em seu comportamento moral, não há nada a fazer a não ser pedir a proteção da polícia. A menos, evidentemente, que a garota tenha sorte suficiente de ter pais ou irmãos que possam cuidar desse assunto pessoalmente, sem nenhum escândalo. (Pausa) Aliás, qualquer tipo de escândalo no meu caso seria uma verdadeira... uma verdadeira...
ANTON (completando, novamente)
Hecatombe!
SRTA. COLLINS
Hecatombe é a palavra. Uma verdadeira hecatombe! Isso por causa da Igreja. O senhor é anglicano?
ANTON
Não, senhora, sou católico.
SRTA. COLLINS
Bem, suponho que o senhor saiba que, na Inglaterra, somos considerados a Igreja Católica Inglesa. Temos direito de sucessão apostólica através de São Paulo, que cristianizou os primeiros anglos – como é chamado o povo original da Inglaterra – e, a partir daí, estabeleceu-se o ramo inglês da Igreja Católica. Então, quando o senhor ouvir que nossa Igreja foi fundada por Henrique VIII, aquele velho horrível e lascivo que teve tantas esposas, tantas quanto o Barba Azul, o senhor verá o quão ridículo e o quão absolutamente...
ANTON
Abnóxio?
SRTA. COLLINS
Exatamente. Abnóxio é a palavra... O senhor sempre com a palavra certa no momento exato! O quão absolutamente abnóxio é, para quem quer que conheça e entenda a história da Igreja.
ANTON
Claro, senhorita. Todo mundo reconhece isso.
SRTA. COLLINS
Bem, eu estou meio cansada. Não sei por quê mamãe não nos trouxe o refresco!
ANTON
Ela deve estar descansando agora! Por quê não procura descansar também, Srta. Collins? Já está ficando um pouco tarde.
SRTA. COLLINS
Tem razão, senhor. Vou me recolher. Por gentileza, se mamãe perguntar por mim, diga-lhe que estou no meu quarto.
ANTON
Direi.
SRTA. COLLINS (subindo as escadas)
Vou orar e dormir. Boa noite, Senhor... Anton, não é mesmo? É nosso hóspede? (Sai)
ANTON
Bons sonhos, Srta. Collins.
Música. Luz. Anton “passeia” lentamente pela sala, tocando em alguns objetos pensativamente. Sai para a varanda e acende um cachimbo. O cenário fica escuro, exceto na varanda onde a luz azul lembra a noite que cai. Somente a silhueta de Anton fumando é vista pelo público, através da tela da janela. A luz vai caindo em “fade”, até o black-out total. Quando as luzes voltam, Amanda e Eloi estão posicionados para a cena seguinte. É um novo dia.
AMANDA
Eloi, meu filho, o que te provoca a asma é essa excitação em que você vive e não o mau ar que respira aqui.
ELOI
Estou arquejante, eu sei.
AMANDA
Sente-se e tente se acalmar.
ELOI (andando em torno do sofá)
Não posso.
AMANDA
Tente então uma pastilha de Amital.
ELOI
Não quero abusar dos remédios. Não me sinto bem. Eu nunca me sinto bem!
AMANDA
Você não se cuida como deveria...
ELOI
Não me lembro do tempo em que me sentia bem.
AMANDA
Você nunca foi são do jeito que eu gostaria que fosse.
ELOI
Parece mesmo que sofro de um cansaço crônico!
Nesse momento, a Srta. Hardwicke-Moore desce as escadas rapidamente, sendo seguida pela Sra. Wire, com um pote na mão.
SRA. WIRE (exultante)
Olhem só o que eu descobri no quarto da “respeitável” Senhorita Hardwicke-Moore: pomada de bergamota. Vaselina, isso sim! Eu posso bem imaginar onde a senhorita usa isso!
SRTA. MOORE (ruborizada)
Em primeiro lugar, a senhora não tem o direito de mexer nas minhas coisas...
ELOI (para Amanda)
Eu não digo? Ela mexe em tudo...
SRTA. MOORE
Em segundo lugar, eu uso isso para... para amaciar minhas cutículas.
SRA. WIRE
Hummm, cutículas? (Para todos) Ela é muito exigente!
SRTA. MOORE
O quê quer dizer com isso?
SRA. WIRE
Não se faça de boba. Ainda por cima fica me atazanando com esse papo de que minha casa só tem baratas...
SRTA. MOORE
E não é verdade? Esse lugar está empesteado!
SRA. WIRE
Não está tão mal assim. À propósito, se eu, por acaso, estive “olhando” suas coisas... era para procurar algum dinheiro. Não sei se a senhorita lembra, mas ainda não me pagou o restante do aluguel desta semana. Não quero fugir do assunto “baratas”, contudo gostaria de receber esse dinheiro.
SRTA. MOORE
Eu lhe pagarei o resto do aluguei tão logo a senhora as extermine!
Tem início um certo jogo cênico, com duas conversas paralelas.
AMANDA
Na família de seu pai, Eloi, o ponto fraco sempre foi os nervos.
ELOI
Tive uma sinusite, mãe!
AMANDA
Nervos, Eloi.
ELOI
Essa asma, essa aflição, chama a isso de “nervos”?
SRA. WIRE
Ou a senhorita me paga imediatamente, ou vai para o olho da rua!
SRTA. MOORE
Eu pretendo sair msmo, se essas baratas não saírem.
SRA. WIRE
Pois, então, saia. Páre de ficar ameaçando!
SRTA. MOORE
A senhora deve estar louca, eu não posso sair agora!
AMANDA
Nesse ponto, nunca concordei com os médicos.
ELOI
Você detesta todos os médicos. É de uma teimosia atroz!
AMANDA
Acho que todas as curas necessitam de força de vontade.
ELOI
E como posso ter força de vontade se não consigo dormir?
SRA. WIRE
Se é prá viver reclamando das baratas, que praga!, arrume suas coisas e dê o fora, vá para algum lugar onde não exista nenhuma.
SRTA. MOORE
Quer dizer que a senhora insiste em ficar com elas?
AMANDA
Essa sua insônia vem do que você costuma comer à noite.
ELOI
Não agüento ficar com o estômago vazio.
SRA. WIRE
Eu insisto em receber meu aluguel.
SRTA. MOORE
Nesse exato momento, isso está completamente fora de cogitação.
AMANDA
Por quê não toma algo líquido?
ELOI
Não suporto líquidos.
SRA. WIRE
Como assim “fora de cogitação”?
SRA. MOORE
Sra. Wire, o pagamento trimestral do homem que toma conta de minhas plantações de borracha no Brasil ainda não me foi enviado.
AMANDA
Então tome um digestivo qualquer. Uma sopa de legumes com aveia!
ELOI
Essa porcarias me enjoam.
SRA. MOORE
Há semanas espero pelo pagamento, mas hoje recebi uma carta falando sobre um problema qualquer com os impostos do ano passado.
AMANDA
Já percebi que você não se cobre à noite.
ELOI
Não agüento cobertas no verão.
SRA. WIRE
Já ouvi demais sobre suas plantações de borracha no Brasil. Brasil!? Que país é esse???
AMANDA
A gente deve ter sempre alguma coisa sobre o corpo à noite.
SRA. WIRE
A senhorita, por acaso, acha que eu estou nesse negócio há 17 anos e não aprendi nada sobre mulheres do seu tipo?
ELOI
Ah, meu Deus, meu Deus...
SRTA. MOORE
Por Deus, o que há por trás de sua observação?
AMANDA
É que o corpo sua, e quando fica exposto, é fácil por demais apanhar um resfriado!
SRA. WIRE
Vai me dizer que os homens que a visitam à noite vêm conversar sobre plantações de borracha? Sei...
ELOI
Não, não e não... Não é resfriado, é sinusite, já disse...
SRA. WIRE
A senhorita é maluca por afirmar tal tipo de coisa.
AMANDA
Coisas como sinusite e defluxos são provocadas pelas mesmas causas dos resfriados.
SRA. WIRE
Eu ouço o que ouço e sei muito bem o que vem acontecendo aqui.
ELOI
O que vem acontecendo é que, todas as manhãs, às 10 em ponto – como se fosse um relógio – começa uma dor de cabeça que não me deixa até à noite.
SRTA. MOORE
E é à noite que a senhora fica espionando e escutando atrás das portas!
AMANDA
Muitas vezes, defluxos causam dores de cabeça.
SRA. WIRE
Ora, não seja tola. Eu nunca espiono ou escuto atrás das portas.
ELOI
Defluxos nada têm a ver com minhas dores de cabeça.
AMANDA
Como pode saber?
ELOI
Não são aqui. (Faz um gesto, apontando a cabeça)
SRA. WIRE
A primeira coisa que uma senhoria do bairro francês aprende é não ver e nem ouvir. (Faz gestos apontando os olhos e ouvidos)
AMANDA
Onde são, então?
ELOI
Aqui na base do crâneo. E chegam até aqui... (Faz gestos, apontando os locais)
SRA. WIRE
Enquanto o aluguel está sendo pago, tudo bem: sou cega, surda e muda. (Gestos)
ELOI
...na parte superior dos olhos. (Gesto)
SRA. WIRE
Mas, a partir do momento em que o dinheiro não vem, recobro minha voz, minha audição e minha visão.
AMANDA
Visão! Pode ser problema na vista.
ELOI
Quando acabo de trocar os óculos?
SRA. WIRE
Se necessário for, vou até aquele telefone e ligo para o Chefe de Polícia, Sr. Abrams que, por coincidência, não sei se a senhorita sabe, é cunhado de minha irmã.
AMANDA
Você sempre lê com pouca luz.
ELOI
Parece que acha que eu saboto minha própria saúde.
AMANDA
Acho mesmo, Eloi.
ELOI
Você não sabe de nada.
SRA. WIRE
Eu sei de tudo: ontem à noite eu ouvi a discussão sobre aquele dinheiro.
ELOI
Há uma porção de coisas que você não sabe, mãe.
SRTA. MOORE
Quê discussão? Quê dinheiro?
AMANDA
Eu nunca quis saber muita coisa mesmo!
SRA. WIRE
Pois se não sabe, eu lhe digo. Ele falava tão alto que tive que fechar a janela da frente para que a rua inteira não tomasse conhecimento do que estava acontecendo aqui.
AMANDA
O que acontece é que, definitivamente, você não se cuida. Há 3 regras muito simples que eu gostaria que você observasse. Primeiro: você deve sempre usar uma camisa de baixo quando o tempo está variável.
SRA. WIRE
Não ouvi ninguém mencionar nada sobre plantações de borracha no Brasil.
AMANDA
Segundo: mastigue a comida, não engula sem mastigar. Coma como um ser humano e não como um cachorro.
SRA. WIRE
Ouvi muitas outras coisas na conversinha que tiveram no meio da noite.
AMANDA
Terceiro: não durma sem se cobrir direito. Nem dê ponta-pés nas cobertas durante à noite.
SRA. WIRE
Pomada de bergamota!? Vaselina, isso sim! Tá pensando que eu sou boba, é?
AMANDA
Além dessas regras muito simples, da higiene mais corriqueira, você precisa de um pouco mais de fé na sua saúde espiritual.
SRA. WIRE
Plantação de borracha! Essa também não me pega, minha filha. (Sai, em direção à cozinha)
SRTA. MOORE (seguindo-a)
Sra. Wire, afinal por quê tanto rancor em relação à mim?
ELOI (após uma boa pausa)
Seu mundo é tão simples. Um paraíso de idiotas.
AMANDA (repreendendo-o)
Eloi!!!
ELOI
Prá você, é como se eu fosse um estrangeiro. Um desconhecido! Eu moro numa casa onde ninguém sabe meu próprio nome!
AMANDA
Você se cansa, Eloi, quando fica assim excitado!
ELOI
E você fica aí fazendo o seu tricô, falando de cortinas limpas e branquinhas enquanto eu queimo por dentro, eu ardo, sem que nenhuma campainha dê o sinal de alarme.
AMANDA
Do que você está falando, Eloi?
ELOI
É uma carga intolerável. A consciência de um miserável como eu!
AMANDA
Não o compreendo, meu filho.
Eloi
Eu não posso falar mais claramente, mãe.
AMANDA
Você confessaria?
ELOI
Ora, um padre é um aleijado de saias.
AMANDA
Como ousa falar uma coisa dessas?
ELOI
Padres não passam de mágicos aposentados e sem poder: não queimam mais ninguém!
AMANDA
Não queimam? E por quê haveriam de queimar?
ELOI
Porque há necessidade de fogueiras.
AMANDA
Prá quê, Eloi?
ELOI
Pelo bem de queimar, por Deus, pela purificação. Oh, Cristo, eu não posso ficar dentro de casa, eu não posso ficar lá fora, não posso nem sequer respirar direito. Não sei o que está para acontecer!
AMANDA
Assim você acaba tendo um ataque, meu filho. Sente-se. E agora conte-me direitinho e com toda a calma o que foi que aconteceu. O que anda atormentando essa cabecinha nos últimos dias...
ELOI (sentando-se)
Como sabe que aconteceu algum coisa?
AMANDA
Alguma coisa aconteceu e deve ter sido no Correio.
ELOI
Como pode ter desconfiado que fosse lá?
AMANDA
Porque aqui em casa não há nada que possa explicar seu estado.
ELOI
Nada???
AMANDA
Nada que tenha a ver com a sua vida! O quê foi, Eloi?
De dentro da casa, talvez da cozinha, aparece a Srta. Collins acompanhada de Anton. À medida em que ela começa a falar, Eloi sai revoltado, sendo seguido por Amanda que tenta alcancá-lo.
SRTA. COLLINS
Ah, Sr... Anton, não é? Sabe que, antes de morrer, papai era prior da Igreja de Saint Michel e de Saint George, em Glorious Hill, Mississippi. Eu cresci literalmente à sombra da Igreja Anglicana. Em Pas Christian, Natchez, Biloxi, Port Golf, Port Gibson, Columbus e Glorious Hill. Mas sabe que, às vezes, eu suspeito que houve alguma espécie de cisma espiritual na Igreja Moderna? Essas dioceses do norte separaram-se completamente das tradições da boa e velha Igreja Católica.
ANTON
Não diga?
SRTA. COLLINS
Por exemplo, nosso prior na Igreja da Comunhão Sagrada nunca me visitou. Falta de tempo, provavelmente. Eu nem deveria mencionar isso, mas sinto que eles têm um certo prazer malicioso com o que vem acontecendo comigo todas as noites... (Apalpa o roupão)
ANTON
A Srta. Collins está procurando alguma coisa?
SRTA. COLLINS (evitando as lágrimas)
Meu lenço.
ANTON (tirando um trapo do bolso)
Olha aqui, use isto. É apenas um trapo, mas limpo. Exceto na borda... puído...
SRTA. COLLINS
Obrigada, o senhor é um cavalheiro. Minha mãe nos trará um refresco daqui há pouco...
Anton dirige-se à vitrola (gramofone) e coloca “Nada Exceto Um Coração Solitário”, de Tchaicovsky.
SRTA. COLLINS
O tempo está agradável lá fora?
ANTON
Sim, muito agradável, senhorita.
SRTA. COLLINS
Tão quente para essa época do ano! Usei minha estola de Astrakan para o serviço religioso de hoje, sabe? Mas seu peso é realmente excessivo para mim. A calçada estava tão assustadoramente longa no verão...
ANTON
Não é verão agora, Srta. Collins.
SRTA. COLLINS (sonhadora)
Eu pensei que nunca chegaria o fim da última quadra. Um sol muito forte, nenhum galho, nenhuma folha prá me dar um pouquinho de proteção. Só nos resta aguentar, desviar o rosto terrivelmente vermelho e andar tão rapidamente quanto possível, com decência, para passar desapercebida. Algumas vezes, a gente não tem sorte, encontra pessoas e tem que sorrir. Não pode evitá-las, a menos que atravesse a rua, mas isso fica tão óbvio, o senhor sabe... A casa deles, dele e dela, é justamente no meio desse terrível quarteirão sem folhas. Eles têm um automóvel e sempre chegam cedo em casa. Sentam-se na varanda e me vêem passar. E, oh, pai do céu, com um... prazer malicioso. Ela tem olhos tão penetrantes que vêem direto a mim: “Ali vai ela com seu narigão vermelho e brilhante, a pobre velha donzela que te ama!” (Chora)
ANTON
Melhor esquecer tudo isso, senhorita.
SRTA. COLLINS
Eu nunca esquecerei. Certa vez, na Igreja deixei minha sombrinha com franjas brancas que pertencia à minha mãe. O sol me abatia, me queimava... Chicote! Eu andava depressa. Eles chegavam de carro. Tropecei, quase caí, e todos romperam em gargalhadas... E, então, o automóvel deles dirigiu-se para a frente da casa, exatamente onde eu teria que passar. Ela saiu do carro e ficou de pé, no portão, de branco, tão fresca e leve, a barriga arredondada com um bebê: o primeiro de seis. Oh, Pai... E ele ficou sorrindo atrás dela, de branco, leve e fresco. Eu disse “Querido Deus, faça com que eu caia morta!” Ele não o fez, no entanto. “Lucrécia, Lucrécia Collins!”Eu tentei falar, mas não pude, o ar saiu do meu corpo. Cobrí meu rosto e corri, corri... Disse à mamãe: “Precisamos sair da cidade por algum tempo”. E saímos. Agora, depois de todos esses anos, eu o reencontro. Trocou de casa e de mulher. Eu o ví no fundo da Igreja, um dia. Não estava bem certa, mas era ele. Na noite do dia seguinte, ele apareceu por aqui pela primeira vez. Cedeu a seus instintos mais íntimos comigo. Não percebe que mudei, que não posso me sentir de novo como me sentia, agora que ele tem seis filhos com essa garota de Cincinatti. Três já estão no colegial. Seis crianças! Não sei o que dirá quando souber que mais alguém está vindo! (Acaricia a própria barriga, como se estivesse grávida) Provavelmente me culpará porque todo homem sempre o faz! Mesmo apesar do fato de que foi ele quem me forçou!
ANTON (pasmo)
Um... bebê... Senhorita Collins?
SRTA. COLLINS (baixando os olhos, mas falando com orgulho e ternura)
Sim... estou esperando uma criança.
ANTON (pasmíssimo)
Deus é pai!
Black-out. Música animada. Luz. Em cena, Jake e Vicarro em pé.
JAKE
É isso, sô! Tudo o que eu tenho a dizer é que o senhor é um sujeito de sorte! Muita sorte!
VICARRO
Sorte em quê sentido?
JAKE
Sr. Vicarro, justamente agora dá prá eu pegar esse serviço. Vinte e sete vagões cheios de algodão é um baita negócio. Puxa, se é! Eu gostaria de lhe apresentar minha mulher. Sente-se e fique à vontade, eu vou chamá-la...
Jake sobe alguns degraus da escada gritando “Querida, querida...”
VICARRO (para si)
Sorte, é? Sei...
JAKE (de volta, com Flora)
Sr. Vicarro, quero que conheça a Sra. Meighan. Querida, esse é um desanimado jovem que eu gostaria que você animasse. Pensa estar sem sorte porque sua descaroçadora de algodão foi queimada. Tem vinte e sete vagões cheios, prontos para serem descaroçados. Um pedido urgente de um de seus mais importantes clientes. Eu lhe disse: “Sr. Vicarro, o senhor precisa ser cumprimentado, não porque - por uma fatalidade qualquer - pegou fogo no Sindicato que é de sua responsabilidade, mas sim porque acontece de eu estar numa situação em que posso terminar seu serviço.” Diz prá ele o quão sortudo ele é, diz...
FLORA (nervosa)
Eu imagino que ele não ache sorte nenhuma, querido. Afinal, a descaroçadora dele queimou.
VICARRO
Sim, queimou. E eu não sei como começou esse incêndio!
JAKE
Sr. Vicarro, algumas pessoas se casam com as garotas quando elas são miúdas e magras. Então, quando a moça está confortavelmente instalada, o que acontece? Elas engordam!
FLORA
Jake!!!
JAKE
Daí, como eles reagem? Aceitam como algo natural, inevitável? Não, senhor. Começam a se sentir prejudicados. A mocinha que era tão elegante e formosa vira uma matrona. Essa é a raiz de muitos problemas domésticos. Contudo, Sr. Vicarro, eu nunca cometi esse erro. Quando me apaixonei por essa gracinha que eu tenho aqui, ela tinha exatamente o mesmo corpo que tem agora. Olha que dentes! Saudáveis!!! Sorria para o Sr. Vicarro, querida.
FLORA (cruzando timidamente a sala)
Jake, o que é isso?
JAKE
Não é uma mulher grande, peituda, mas é tremenda. Eu disse isso a ela no dia em que decidi pôr uma aliança no seu dedo. “Querida, se você engordar uma grama que seja, te abandono!” E abandonaria mesmo, no minuto em que percebesse que ela me desobedeceu.
FLORA
Jake, páre, tenha dó...
JAKE
É isso o que eu queria ter, é isso o que eu tenho. Olha prá ela, Sr. Vicarro, ela fica vermelha... (Ri) Que bonequinha!
FLORA
Agora chega, Jake.
JAKE
Bem, querida, ponha o Sr. Vicarro à vontade enquanto eu descaroço os vinte e sete vagões de algodão. Essa é a política da boa vizinhança: o senhor me faz um favor, eu lhe faço outro. Até logo para os dois.
Jake sai a passos largos e firmes, criando um clima.
VICARRO
Política da boa vizinhança!?
FLORA
Parece que ele perdeu o juízo completamente.
Ela, desconsertada, senta-se numa poltrona. Ele vai até a janela e olha tristemente. Ela segura sua bolsa de pelica branca no colo.
FLORA
Jake... não teria coragem de me expôr...
VICARRO
O quê? Expôr o quê?
FLORA
Eu estou dizendo que não teria coragem de me expôr ao sol... ao sol que fez essa manhã...
VICARRO
Ah... o sol...
Longa pausa. Clima tenso.
FLORA
Desculpe-me, Sr. Vicarro, mas é que eu não sou muito boa para deixar as pessoas à vontade.
VICARRO
Não é?
FLORA
Não sou boa para bater papo.
VICARRO
Sem cerimônias, Sra. Meighan. A senhora não precisa conversar. (Muda para umo tom mais malicioso e sacana) Eu sou do tipo que prefere um entendimento mais... silencioso.
FLORA
O quê foi que disse, Sr. Vicarro?
VICARRO
Uma coisa que sempre notei nas mulheres é que elas têm sempre algo na mão, prá segurar. Como essa sua bolsa de pelica.
FLORA
Minha bolsa?
VICARRO
A senhora não tem nenhuma razão para continuar com essa bolsa nas mãos. Certamente, não está com medo que eu vá roubá-la...
FLORA
Oh, por Deus, nem pensei nisso!
VICARRO
Não seria uma política de boa vizinhança, seria? De qualquer maneira, a senhora segura essa bolsa para ter alguma coisa nas mãos, não é isso?
FLORA
É... gosto de ter sempre alguma coisa nas mãos.
VICARRO
Claro que gosta! A senhora sabe que as coisas são incertas: a descaroçadora queima, o equipamento dos bombeiros está longe de ser decente, nada garante proteção. O sol da manhã é quente, não dá proteção. As árvores atrás das casas não dão proteção. O material de que são feitos os vestidos, não dá proteção. Maridos... muitas vezes também estão longe de dar proteção. Nada no mundo oferece proteção. Então o que a senhora faz, Sra. Meighan? A senhora segura uma bolsa de pelica branca: é sólida, é segura, é garantida. É algo que se pode segurar. Sabe o que quero dizer?
FLORA (confusa)
Sim, acho que sim...
VICARRO
Lhe dá a sensação de estar lighada à alguma coisa. A mãe porotege o nenen? Não, não... o nenem protege à mãe. A protege de estar perdida, vazia, de não ter nada além de coisas sem vida nas mãos. Talvez ache que isso não faça sentido.
FLORA
Me desculpe, Sr. Vicarro, mas não me faça raciocinar. Sou muito preguiçosa....
VICARRO
Qual é seu primeiro nome, Sra. Meighan?
FLORA (exitante)
Flora.
VICARRO
Flora... Meu nome é italiano, mas eu nasci em New Orleans.
FLORA
Ah, então não é queimado de sol, é moreno por natureza?
VICARRO (levantando a camisa)
Olhe só prá isso.
FLORA (sem jeito)
Sr. Vicarro... por favor...
VICARRO
Tão moreno quanto meus braços!
FLORA (desviando o olhar)
O senhor não precisa me mostrar... Não sou São Tomé.
VICARRO
Desculpe.
FLORA
Sinto lhe informar que não temos nen uma coca-cola para servir. Pensávamos comprar bebidas ontem à noite, mas com tantos acontecimentos...
VICARRO
Acontecimentos?
FLORA
Sim, o incêndio... e tudo...
VICARRO
Não imaginei que todos fossem ficar tão excitados com o incêndio!
FLORA
Um incêndio é sempre excitante. Depois deles, cachorros e galinhas não dormem. Se agitam demais, como que se lamentando de uma coisa terrível. Eu mesma não pude dormir. Me deitei e transpirei a noite toda...
VICARRO
Por causa do fogo?
FLORA
Do fogo e do calor e dos mosquitos... Além do mais, eu estava uma fera com Jake.
VICARRO
Ah, sim? E por quê?
FLORA
Ele saiu logo após a hora do jantar. Depois, voltou e o fogo já havia começado... Ao invés de irmos à cidade como ela tinha dito, decidiu ir olhar o incêndio. A fumaça entrou pelos meus olhos e minha garganta. Fiquei tão nervosa que até chorei. Tomei duas colheres de paregórico, suficiente prá fazer dormir um elefante. Mesmo assim, fiquei acordada ouvindo o movimento das galinhas.
VICARRO
Pelo jeito, a senhora passou uma noite bastante desagradável.
FLORA
Pelo jeito...
VICARRO
Quer dizer que o Sr. Meighan, como a senhora disse, desapareceu depois do jantar?
FLORA
É... (dando-se conta de sua indiscrição) Oh, ah.... Sím, só por um momento... Breve...
VICARRO (com ares de investigador)
Só por um momento!? Quanto tempo?
FLORA
Quanto tempo? Como assim?
VICARRO (firme)
Quanto tempo após o jantar o seu marido ficou fora, Sra. Meighan?
FLORA
Eu... não sei... onde o senhor está querendo chegar, Sr. Vicarro?
VICARRO (cínico)
Querendo chegar? Eu? A lugar algum...
FLORA
Está me olhando de um jeito tão engraçado...
VICARRO
Ele desapareceu por um momento. Foi isso o que fez. Quanto tempo durou esse momento? A senhora pode se lembrar, Sra. Meighan.
FLORA (firme)
Que diferença isso faz? O que interessa isso, afinal?
VICARRO
Por quê a senhora se incomoda com a pergunta?
FLORA
O senhor faz com que pareça que eu estou num tribunal ou coisa assim.
VICARRO
Não gostaria de fazer de conta que a senhora é uma testemunha?
FLORA
Testemunha de quê, Sr. Vicarro?
VICARRO
Por exemplo, de um... incêndio doloso.
FLORA
Doloso? O que é doloso?
VICARRO
A destruição de uma propriedade por incêndio premeditado.
FLORA
O desaparecimento de meu marido depois do jantar... eu posso explicar isso...
VICARRO
Pode? Muito bem. Como explica então? (Ele a encara, ela olha para baixo) O que aconteceu, Sra. Meighan? Não consegue ordenar seus pensamentos?
FLORA
Não, mas...
VICARRO
Sua mente teve um lapso a respeito do assunto?
FLORA
Olhe, eu...
VICARRO
Está achando impossível se lembrar exatamente por quê seu marido desapareceu após a hora do jantar?
FLORA
Não... sim... ele...
VICARRO
Quando ele voltou, vejamos, o fogo tinha apenas começado no Sindicato dos Algodoeiros?
FLORA
Sr. Vicarro, não faço idéia de onde o senhor quer chegar.
VICARRO
A senhora é uma testemunha insatisfatória, Sra. Meighan.
FLORA
Eu não consigo pensar direito quando as pessoas me encaram diretamente.
VICARRO (sedutor)
Prefere, então, esquecer esse assunto?
FLORA
Por favor.
VICARRO
Afinal, é inútil ficar chorando por causa de uma descaroçadora queimada. O mundo, Sra. Meighan, está baseado no princípio do “toma lá, dá cá”...
FLORA
O que o senhor quer dizer?
VICARRO
Nada de específico. (Ele a abraça por trás, dando início a uma massagem lenta nos ombros) A senhora se incomoda?
FLORA (revirando os olhos)
Com... o quê?
VICARRO
Que eu lhe faça uma massagem. A senhora está um pouco tensa... Isso ajuda a relaxar.
FLORA
O senhor me deixou um pouco nervosa com essas perguntas sobre o incêndio...
VICARRO
Eu nada lhe perguntei a respeito do incêndio e sim, a respeito de seu marido ter saído após a hora do jantar...
Clima de sedução.
VICARRO
A política da boa vizinhança. Foi uma explicação encantadora que seu marido fez. Agora entendo o que ele quis dizer.
FLORA
Ele se referia ao discurso de nosso Presidente Roosevelt, que ouvimos a semana passada.
VICARRO
Não, eu acho que ele estava falando de alguma coisa mais próxima de casa, Sra. Meighan. Você me faz um favor, eu te faço outro! A senhora... digo, você... é uma mulher bem delicada!
FLORA
Delicada? Eu?
VICARRO
Cada pedacinho é delicado. Uma fina flor, um deleite... Suave...
FLORA
Nossa conversa está adquirindo um tom pessoal, sem dúvida...
VICARRO
Você me faz pensar em algodão.
FLORA
Como?
VICARRO
Algodão.
FLORA
Eu deveria lhe agradecer por isso?
VICARRO
Não, só sorrir. A senhota tem um sorriso muito atraente. Sorria, Sra. Meighan, sorria... (tocando-a)
FLORA
Por favor, Sr. Vicarro, não me toque. Eu não gosto de ser tocada.
VICARRO
Então sorria.
FLORA
O senhor me deixa meio histérica... Espero que o senhor não pense que, de alguma forma, Jake está metido nesse incêndio. Juro, juro por Deus, ele nem saiu de casa... Agora me lembro perfeitamente: ele estava na garagem consertando a caminhonete quando o fogo começou e só daí é que fomos para a cidade.
VICARRO
Para celebrar?
FLORA
De jeito nenhum.
VICARRO
vinte e sete vagões de algodão é um bruta bom negócio. Caído do céu, Sra. Meighan.
FLORA
Pensei que houvesse dito que mudaríamos de assunto.
VICARRO
A senhora que o trouxe de volta.
FLORA
Por favor, não tente me confundir ainda mais. Juro por Deus que o incêndio já havia começado quando saímos.
VICARRO
Não foi o que disse naquela hora!
FLORA
O senhor me enrolou toda. Fomos à cidade depois que o incêndio começou. Nem sabíamos direito o que tinha acontecido. (Desvencilhando-se dele) Talvez seja melhor preparar uma limonada para nós.
VICARRO
Não se dê a tanto trabalho.
FLORA
É que o tempo está ficando muito quente. Muito... calor...
VICARRO (iniciando uma aproximação ainda mais íntima)
Sabia que um corpo pode emprestar frio a outro?
FLORA
Sempre ouvi que um corpo pode emprestar calor a outro.
VICARRO
Não no meu caso. Estou frio.
FLORA
Não me parece.
VICRRO
Frio como um pepino. Se não acredita, toque-me.
FLORA
Tocá-lo? Onde?
VICARRO
Onde quiser. (Início de uma música. Vicarro abre o ziper de sua calça, pega a mão de Flora e a coloca dentro. Momento de total sensualidade)
FLORA (refazendo-se, brava)
Sr. Vicarro, não...
VICARRO (abraçando-a novamente)
Você gosta de me tocar e de ser tocada por mim.
FLORA
Não, não gosto. Gostaria sim que parasse.
VICARRO
Gostaria que te tocasse mais.
FLORA
Não, não gostaria não.
VICARRO
Essa marca azul no seu pulso...
FLORA
O que... tem?
VICARRO
Seu marido é que torceu!?
FLORA
Claro que não.
VICARRO
Não seja cínica.
FLORA
Sr. Vicarro!!! (Sente-se tonta, coloca a mão no rosto) Ai...
VICARRO (abraçando-a novamente)
Está se sentindo fraca?
FLORA
Um pouco confusa.
VICARRO
Você é uma mulher tão delicada...
FLORA
Páre, páre... Senão eu vou chamar alguém...
VICARRO
Não há ninguém em casa que eu sei. Seu marido me falou...
FLORA
Estou me sentindo tão... esquisita...
VICARRO
Você está relaxando... Eu gosto de você. (Beija-a selvagemente, enquanto tira de seu cinto um chicote)
FLORA
Sr. Vicarro, não... Por favor, não...
VICARRO
Relaxa, Flora, relaxa...
A luz vai caindo. A música vai aumentando de volume. Ouve-se uma chicotada e um grito de pavor. Uma porta se bate. Fim do Ato I.
ATO II
O cenário agora está invertido: a varanda fica em primeiro plano. É noite, ouve-se seus sons. Depois de um momento, a porta é aberta e Flora aparece. Sua aparência é de alguém destruído. Cabelos soltos, manchas pelo corpo, hematoma no rosto, saia rasgada. Seus seios estão à mostra. Sua imagem impressiona, afinal fora espancada e estuprada. Segura sua inseparável bolsa, com certo desdém. Jake vem chegando, cantarolando e, em nenhum momento, percebe o verdadeiro estado de sua mulher.
JAKE
Olá querida. Ninguém em casa ainda? (Pausa) Cansada? Cansada demais prá falar? Pois é assim que eu me sinto: cansado demais prá falar. Cansado prá diabo, prá falar numa única palavra. (Joga-se nos degraus ou na balança da varanda) Vinte e sete vagões... cheios de algodão. É o tanto que descarocei hoje. Trabalho prá homem!
FLORA (rouca, sem se mexer)
Homem...
JAKE
Vinte e sete vagões de puro algodão...
FLORA
Algodão... (cai numa gargalhada nervosa)
JAKE
Do que está rindo, querida? Espero que não seja de mim!
FLORA
Não...
JAKE
Ainda bem. O trabalho que terminei não tem nada de engraçado. Dirigi aquele bando de negros como um domador de mulas. Eles não têm cérebro, tudo o que têm é corpo. Você tem que mandar, mandar, mandar. Eu não posso imaginar como é que eles comem se não tiver alguém prá dizer a eles pôr a comida na boca. (Ela ri novamente, com uma baba saindo de sua boca) Você precisa rir assim? Eu acabei um dia terrível de trabalho e você só ri!
FLORA
Eu não me gabaria tanto.
JAKE
Não estou me gabando, mas tive um dia exausto e gostaria de um pouco de consideração, ao invés de risadas e ironias e respostas atravessadas...
FLORA
Eu não estou... (Ri de novo) dando respostas atravessadas...
JAKE
Terminar um grande trabalho e só mencionar o fato de que está terminado não me parece gabar-se.
FLORA
Você não foi o único... que fez um grande trabalho... hoje.
JAKE
Alguém mais que eu saiba?
FLORA
Talvez você pense que eu... tive um dia fácil! (Gargalha)
JAKE
Você está rindo como se tivesse de porre! Tá mijada, tá? Veneno de barata ou limonada em excesso? Acho que eu fiz um bom trabalho, batalhando como uma mula prá você, um puta mulherão que age como se fosse um gatinho. Esse é o tipo de mulher que eu tenho em minhas mãos.
FLORA
Claro. (Ri) Você facilitou tudo prá mim.
JAKE
Eu tô prá ver você levantar um único dedo. Ficou tão preguiçosa, até prá arrumar suas próprias coisas! Pois é melhor você abrir o olho. Existe um novo departamento no governo. Chama-se “M.I.”: especializado em mulheres inúteis. Existem planos secretos para matar todas elas.
FLORA
Que bom! Fico contente em ouvir isso!
JAKE
O que é que tá te envocando, hein?
FLORA
Acho que foi um erro.
JAKE
O quê foi um erro?
FLORA
Tentar fazer o pessoal do Sindicato de trouxa!
JAKE
Não sei do que você está falando. Nós estávamos em dificuldades: o Sindicato comprando todas as terras por aqui e expulsando todos os plantadores, sem nenhuma indenização. Fazendo falir quase todas as lojas do mercado. Construíram sua própria descaroçadora para tratar o algodão deles. Máquinas substituíndo homens! Por um momento achei que eu estava frito, mas agora que a máquina deles está queimada e o Sr. Vicarro decidiu me dar um pouco de trabalho, a situação pode melhorar muito!
FLORA
Então talvez você não entenda a política da boa vizinhança.
JAKE
Não entendo? Ora, filhinha, essa é boa: eu sou o cara que inventou isso!
FLORA
Eu espero que você esteja bem satisfeito com tudo o que fez.
JAKE
O Vicarro estava, quando chegou lá.
FLORA
É... estava... bem satisfeito...
JAKE
Como é que passaram a tarde?
FLORA
Muito bem... excelente...
JAKE
Espero que você o tenha deixado à vontade.
FLORA
Pois deixei... (controlando o espasmo) Ele disse... que não está pensando em construir... uma nova descaroçadora. Vai deixar você fazendo o trabalho prá ele.
JAKE
Não diga?
FLORA
Planeja voltar... com muito mais algodão... Talvez mais vinte e sete vagões...
JAKE
Beleza!!!
FLORA
Enquanto você trabalha... ele vem se entreter com uma boa... conversa.
JAKE (levantando-se e indo em direção à porta de tela)
Vem, vou tomar um banho e, quando acabar, vamos até à cidade ver o que há nos cinemas. Você vai saculejar na caminhonete!
Jake entra em casa. Flora abre lentamente sua bolsa de pelica branca e, de dentro, tira um maço de papel absorvente. Toca a si mesma aqui e ali, dando risadinhas sem fôlego.
FLORA (para si)
É... realmente eu não devia ter uma bolsa de pelica branca. Está recheada de papel Kleenex... bem gordinha... como um bebê... grande... nos meus braços... Como um nenenzinho... (Embala gentilmente a bolsa e canta) “Nana, nenen, que a cuca vem pegar. Papai foi na roça, mamãe no...”
Flora entra. Música. Luz em “fade” até black-out geral. Quando as luzes voltam, é dia. Em cena, Anton e Srta. Collins conversam.
ANTON
Srta. Collins, eu estive pensando...
SRTA. COLLINS
Sim...
ANTON
Talvez fosse melhor prá senhorita mudar um pouco de ares... ir para outro lugar.
SRTA. COLLINS
Ah, se ao menos tivesse coragem... mas não tenho. Cresci tão acostumada aqui. E as pessoas lá fora... é tão difícil encará-las...
ANTON
Talvez não tenha que encarar ninguém, senhorita.
SRTA. COLLINS (amedrontada)
Alguém está chegando aqui!
ANTON
Fique calma, Srta. Collins.
SRTA. COLLINS
E se forem os guardas procurando Richard? Vamos mandá-los embora... Decidi não processar o Sr. Martin.
Chegam o médico, Dr. White, acompanhado da Sra. Wire.
DR. WHITE
Boa tarde!
SRTA. COLLINS
Eu decidi não processar o Sr. Richard Martin, meu senhor. Pode retirar a queixa.
DR. WHITE
Srta. Collins?
SRA. WIRE
Sim, é essa a “senhorita” que eu queria que o senhor conhecesse, Dr. White.
DR. WHITE
Como vai? (Para a Sra. Wire) Sra. Wire, por gentileza, vá até o quarto da Senhorita Collins e arrume algumas coisas.
SRA. WIRE (saindo de cena)
Sim, doutor.
SRTA. COLLINS
Coisas?
DR. WHITE
Sim, a Sra. Wire vai arrumar sua mala para fazermos um passeio. Um lugar estranho sempre se parece com um lar se, logo nos primeiros dias, levamos nossas coisinhas conosco, não é?
SRTA. COLLINS
Um lugar... estranho?
DR. WHITE (indiferente, fazendo um memorando)
Não fique perturbada, Senhorita Collins.
SRTA. COLLINS (excitada)
Já sei... O senhor veio da Sagrada Comunhão para me colocar na prisão por acusações morais e danos familiares!
ANTON
Não, Srta. Collins, está com uma idéia errada. Este é o médico que...
SRTA. COLLINS
Um médico? É muito cedo para o parto!
DR. WHITE
A senhorita irá me acompanhar por algum tempo, até as coisas se acertarem. (Checando o relógio) Duas e vinte e cinco! (Vai para a porta de tela) Sra. Wire...
SRTA. COLLINS (com lenta e triste compreensão)
Oh... Eu vou embora.
ANTON
Ela sempre foi uma dama, doutor. Uma perfeita dama!
DR. WHITE
Sem dúvida!
SRTA. COLLINS (lembrando-se)
Deus, o Richard... Preciso escrever-lhe um bilhete.
ANTON (mexendo nos bolsos)
Aqui tem lápis e papel, senhorita.
Ela senta-se e começa a escrever. Enquanto isso, Sra. Wire sai com sua mala.
DR. WHITE
Tudo aí, Sra. Wire?
SRA. WIRE
Prontinho, doutor.
SR. WHITE (para Srta. Collins)
Venha, nós podemos cuidar dessa carta...
ANTON (bravo)
Deixe que ela termine o recado!
SRTA. COLLINS (dobrando o papel)
Está terminado! (Entregando o papel a Anton) Por favor, senhor...
ANTON
Fique tranquila, eu entrego a ele.
DR. WHITE
Tudo bem, querida, venha. (Ele a dirige com firmeza)
SRTA. COLLINS (virando-se para Anton)
Sr... Anton, não é?
ANTON
Pois não, Srta. Collins.
SRTA. COLLINS
Se ele vier de novo... e souber que parti... eu preferia que não lhe contasse... sobre o bebê. Acho melhor eu mesma contar isso a ele. (Sorri gentilmente) Sabe como são os homens, não?
ANTON
Sim, senhorita... eu sou um deles, lembra?
SRTA. COLLINS
Até logo, então. (Ela sorri) Mamãe vai trazer... algum refresco... daqui há pouco...
Srta. Collins e Dr. White saem de cena. Momento de comoção. Música. Anton solta uma lágrima furtiva.
SRA. WIRE (tomando bruscamente o bilhete das mãos de Anton)
Dê-me isso aqui.
ANTON Sra. Wire, a senhora não tem esse direito.
SRA. WIRE
Ora, ora...
A leitura é feita em off, através da voz da própria Srta. Collins.
SRTA. COLLINS (em off)
“Querido Richard. Estou indo embora por algum tempo. Mas não se preocupe. Em breve, voltarei. Tenho um segredo para lhe contar. Mais que um segredo: uma surpresa! Amor da sua... Lucrécia.”
SRA. WIRE
Segredo, hum! (Pausa. Para Anton) E aí, desocupado, por quê não sobre e me ajuda na limpeza daquele quarto? Vou jogar tudo que era dela fora.
ANTON (revoltado)
Ora, tenha um pouco de sentimento. Não toque naquele quarto. Não hoje... hoje, não!
SRTA. MOORE (saindo para a varanda)
Oh, a Srta. Collins já se foi? Nem me despedi dela!
SRA. WIRE
Apareceu a Margarida. Por acaso, já está com o dinheiro que me deve? Ou prefere que eu arrume um jeito de expulsar você também da minha casa, sua vadia...
ANTON
Chega! Páre de atormentar essa mulher, Sra. Wire.
SRA. WIRE
Escute aqui, Shakespeare dos mendigos...
ANTON
Escute a senhora. A droga dos seus gritos atormenta qualquer um. E ninguém tem obrigação de lhe aguentar mais.
SRA. WIRE (gritando)
Doente! Alcólatra! Seu frustrado... Eu ando cheia de aguentar parasitas, tá claro? Estou pelas tampas de todos vocês: ratos de pensão, mestiços, ébrios, loucos e degenerados que tentam enganar a todos com suas mentiras, suas promessas...
SRTA. MOORE
Oh, por favor, por favor, parem de gritar! Não há necessidade!
SRA. WIRE
A senhora, com sua plantação de borracha no Brasil... Ha, ha... Dama da Bergamota! Esse é seu título...
A Srta. Moore senta-se no balanço, com as mãos no rosto, e chora.
ANTON
Páre de importunar essa mulher. Será que não existe mais compaixãoi nesse mundo? O que foi que aconteceu? Nõ há mais compreensão? Tá tudo acabado? Onde está Deus? Onde está Jesus Cristo? O mundo acabou? E se não existir, mravilhosa Sra. Wire, nenhuma plantação de borracha, hein?
SRTA. MOORE
Eu digo que existe. Existe, sim!
ANTON
E daí senão existir nenhum rei da borracha em sua vida? Tem que ter algum? Devemos culpá-la pelo simples fato dela ter necessidade de compensar as deficiências da realidade exercitando um pouco... um pouco que seja, sua bem dotada imaginação?
SRTA. MOORE
Não, não... Não é imaginação...
SRA. WIRE
Ora, páre de jogar na minha cara essas frases empoladas. Logo o senhor que diz ter escrito uma obra-prima de 780 páginas? Seu fracassado, faz boa dupla com a Dama da Bergamota, levando-se em conta tão bem dotada imaginação!
ANTON
Ora, muito bem. E se isso for verdade? Suponhamos qure não haja nenhuma obra-prima de 780 páginas... Suponhamos que não haja mesmo nenhuma obra-prima... E o que tem isso, Sra. Wire? Somente poucos, muito poucos rabiscos sem valor no fundo de minha canastra. Suponha que eu tenha sonhado ser um grande escritor... mas que me faltaram a força e o poder para tal. Suponhamos que meus livros não tenham alcaçado seus objetivos no capítulo final e que meus versos sejam enfadonhos e incompletos. Suponha que as cortinas da minha fantasia mais sublime subam e mostrem dramas maravilhosos, mas que as luzes se apaguem antes mesmo do pano cair. Suponha que todas essas coisas sejam verdade! E suponha que eu, errando de bar em bar, bebendo’um drinque após o outro, acabe me estatelando no colchão empesteado deste bordel. Suponha que eu tenha que tornar esse pesadelo suportável enquanto eu for seu herói miserável... Suponha que eu ornamente, ilumine, glorifique tudo. Com sonhos, ficções, fantasias... Assim como a existência de uma obra-prima de 780 páginas, pronta prá ser produzida pela Broadway... e de maravilhosos volumes de poesia nas mãos dos editores, esperando apenas por uma assinatura para serem liberados! Suponha que eu viva nesse lamentável mundo de ficção... Qual a sua satisfação, mulher, de dilacerar tudo, de aniquilar, de dizer que é mentira? Vou lhe dizer uma coisa, agora ouça: não existem mentiras, a não ser aquelas que são atochadas em nossas bocas pelos punhos da miséria e da necessidade, Sra. Wire. Sim, então eu sou um mentiroso! Mas o seu mundo é feito de mentiras. Mentiras e mais mentiras! (Pausa) Agora estou cansado. Disse o que tinha que ser dito e não temos dinheiro para lhe dar. Logo, suma-se e deixe essa mulher em paz. Deixe-a, vamos, saia!
SRA. WIRE (revoltada, de pé na porta)
Amanhã de manhã... Ou recebo meu dinheiro ou rua. Vocês dois. Os dois juntos! Obra-prima de 780 páginas!!! Plantação de borracha no Brasil!!! Lorotas!
Devagar, Anton e a Srta. Moore viram-se e entreolham-se. Ele estende seus braços num gesto de ajuda. Vagarosamente e com firmeza. Srta. Moore, chocada, desvia seu olhar e diz:
SRTA. MOORE
Barats... por toda parte! Nas paredes, no teto, no chão. O lugar está cheio delas. (Pausa) Obrigada, muito obrigada... Eu vivo aqui, o senhor também, e nem sei seu nome. Senhor...?
ANTON
...Anton. Anton Pavlovitch Tchecov.
SRTA. MOORE
Obrigada, Sr. Tchecov. Obrigada... Anton.
Black-out. Música. Quando as luzes voltam, vê-se Eloi conversando com a mãe.
AMANDA
O que foi, Eloi?
ELOI
Uma carta.
AMANDA
Recebei carta de alguém? Isso te deixou nervoso?
ELOI
Não recebi carta de ninguém.
AMANDA
Então, o que quer dizer com “uma carta”?
ELOI
Uma carta chegou acidentalmente em minhas mãos.
AMANDA
Enquanto separava a correspondência no Correio?
ELOI
Sim.
AMANDA
E o que aconteceu que te impressionou tanto!
ELOI
A carta não havia sido bem fechada e, de dentro dela, caiu uma coisa...
AMANDA
De dentro do envelope?
ELOI
É.
AMANDA
E o que foi que caiu?
ELOI
Um retrato.
AMANDA
Que espécie de retrato?
ELOI
Uma fotografia obscena caiu do envelope.
AMANDA
Uma fotografia o quê?
ELOI
Uma fotografia... pornográfica. Você não pode nem imaginar!
AMANDA
Era tão indecente assim?
ELOI
Senti como se alguma coisa tivesse explodido em minhas próprias mãos. E queimasse minhas faces como um ácido...
AMANDA
Era endereçada a quem?
ELOI
A um desses antiquários riquíssimos do centro.
AMANDA
E quem foi que a mandou?
ELOI
Um estudante... da Universidade.
AMANDA
E o autor não é passível de uma punição judicial?
ELOI
Evidente que é. E a anos de prisão!
AMANDA
Não vejo razão para usar de benevolência em tais casos.
ELOI
Nem eu.
AMANDA
E o que você fez?
ELOI
Nada... ainda.
AMANDA
Ainda não o denunciou às autoridades?
ELOI
Ainda não.
AMANDA
Não vejo por quê exita.
ELOI
Não podia agir sem antes investigar.
AMANDA
Investigar o quê?
ELOI
As circunstâncias que precederam o caso.
AMANDA
Que circunstâncias são essas?
ELOI
A pouca idade do autor tem alguma importância no caso.
AMANDA
E o autor era muito moço?
ELOI
Dezenove anos apenas.
AMANDA
E os pais dele vivem?
ELOI
Nesta cidade. É filho único, ainda por cima.
AMANDA
E como conseguiu saber tanta coisa?
ELOI
Investiguei pessoalmente.
AMANDA
Como assim?
ELOI
Procurei o autor da carta. Estive no internato. Conversamos, discutimos. Fingi que tinha ido procurá-lo para extorquir dinheiro dele, que tinha guardado a carta para tentar chantagem.
AMANDA
Que coisa horrível!
ELOI
Fui obrigado a contar que era empregado do Correio, que tinha que prestar contas ao governo e que era uma verdadeira impriudência ter esperado prá tomar as providências que o caso requer.
AMANDA
As providências que o caso requer?
ELOI
E foi aí que começou a mostrar quem realmente é. Insultou-me, injuriou-me. Não posso nem repetir do que me acusou, das propostas que me fez. Fugi do quarto...
AMANDA
E depois disso? Não fez nada ainda?
ELOI
Pensei e tornei a pensar. Não consegui tomar uma resolução.
AMANDA
Agora é tarde.
ELOI
Por quê?
AMANDA
Guardou a carta tempo demais para que ainda possa agir.
ELOI
Não me sinto paralisado.
AMANDA
Mas se denunciá-lo agora certamente irão lhe perguntar por quê não o fez antes.
ELOI
Posso explicar.
AMANDA
Não, agora é melhor não fazer mais nada.
ELOI
Eu tenho que fazer alguma coisa, mãe.
AMANDA
É melhor destruir essa carta.
ELOI
E deixar os culpados livres?
AMANDA
O que mais pode fazer depois de ter hesitado tanto?
ELOI
Ele tem que ser castigado!
AMANDA
Onde está a carta?
ELOI
Aqui, no meu bolso.
AMANDA
Tem essa coisa... com você? Que loucura! Imagine se acontecesse alguma desgraça e uma coisa dessas fosse encontrada no seu bolso enquanto estivesse incosciente e não pudesse explicar a razão de tê-la em seu poder? Eloi, você tem que destruir essa carta já!
ELOI
Como?
AMANDA
Queimando-a. E imediatamente.
ELOI
Vou entrar e queimá-la.
AMANDA
Não. Queime a carta aqui na minha frente.
ELOI
Você não deve ver uma coisa dessas.
AMANDA
Prefiro arrancar meus olhos do que olhar para isso!
ELOI
Acho melhor fazer isso na cozinha ou no porão.
AMANDA
Não, não, Eloi. Aqui na varanda.
ELOI
Alguém pode ver e pensar que me pertencia.
AMANDA
Eloi, queime-a imediatamente.
ELOI
Então vire de costas. Vou tirá-la do bolso.
AMANDA (virando-se)
Bem... queime a carta e esta fotografia horrível.
ELOI
Já vai.
Eloi risca o fósforo. Está lívido à luz da chama. Tem seus olhos fora de órbita. Ofegante, aproxima a chama do papel, sem ousar queimá-lo. De repente, dá um grito e deixa o fósforo cair.
AMANDA (virando-se)
Queimou o dedo, meu filho?
ELOI
Queimei.
AMANDA
Venha, vamos até a cozinha para que eu lhe ponha um pouco de soda.
Eloi se antecipa à mãe. Corre para dentro e tranca a porta. Amanda fica muito assustada. Música de tensão.
AMANDA
Eloi... Eloi... você trancou a porta... Eloi, no que está pensando? Eloi, abra esta porta. Abra a porta, Eloi...
Eloi, que até então fitava a mãe pela tela da porta, agora some. Amanda continua gritando.
AMANDA
Eloi... Eu não estou brincando. Abra já esta porta!
Eloi reaparece na porta de tela.
AMANDA
Eloi, meu filho, o que você está fazendo? No que está pensando, Eloi, abra já esta porta, por favor...
Gritos dos hóspedes. Clima de pânico total. Barulho de explosão. A casa começa a ser incendiada por dentro. Eloi, parado, fita a mãe. Amanda bate desesperadamente à porta.
AMANDA (chorando)
O que você fez, Eloi? O que você está fazendo, meu filho?
ELOI (grita, de dentro da casa)
Limpeza, mãe. Limpeza moral. (Mais alto) Que toda sujeira seja queimada! Que toda essa gente seja condenada e purificada pelo fogo!
Eloi some definitivamente. A casa é totalmente tomada pelo fogo.
AMANDA
Eloi, pelo amor de Deus... Fogo! FOGO!!! A casa está pegando fogo!!!
(A casa continua pegando fogo, a iluminação vai caindo até o black-out geral. Cortinas.)
F I M