-
MONÓLOGO EM 1 ATO PARA UMA ATRIZ -
(ELA ENTRA EM SEU CLOSET, COM A TOALHA NA
CABEÇA, RECÉM SAÍDA DO BANHO. ENQUANTO FALA AO CELULAR, OLHA PARA A QUARTA
PAREDE - O PÚBLICO - COMO SE FOSSE UM GRANDE ESPELHO ONDE CHECA SUA IMAGEM. O
AMBIENTE AINDA SE COMPÕE DE UM BANQUINHO-DESIGN, UMA ARARA CHEIA DE BOLSAS,
BIJOUX E ECHARPES, UM ABATJOUR ALTO DE CHÃO, CAIXAS DE MUDANÇAS EMPILHADAS, UMA
OU DUAS MALAS GRANDES, TALVEZ UM BAÚ E, PERTO DA RIBALTA, MUITOS SAPATOS...
MUITOS!)
Alô, oi. É da transportadora? Só pra
confirmar o horário da minha mudança... Dulce Penteado. OK! Não, não, já está
quase tudo pronto. Obrigada!
(DESLIGA. LIGA PRO PAI) Paizinho, que
saudades! Eu sei o quanto eu tô em falta com você. Minha vida tá uma zon..., tá
uma loucura. Eu tô mudando de casa, de trabalho, tô louca! Mas juro que, depois
que eu der uma organizada geral, eu vou até Rio Preto te ver... Oi? Não, pai, o
senhor sabe. Trabalhar é administrar problemas, mas às vezes eles são tão
maiores que nossa capacidade em resolvê-los! Não, não saí de lá magoada. É,
muito tempo... 15 anos... É uma adolescente toda, né?
(RI) É que achava que ia me aposentar lá.
Mas, de repente, a vida com sua mão pesada te dá na cara pra te acordar e te
dizer que tudo pode mudar, pelo menos enquanto você está viva! É, pai, eu
sei... Tudo tem um lado bom. Louca de mim se, à beira dos quarenta, ainda não
tivesse aprendido isso, né? Então... aproveitando os festejos que as mudanças
trazem, tô me mudando pra um apartamentinho menor. Já fazia um bom tempo que eu
estava querendo um lugar com menos espaço. Pra quê 3-quartos e uma sala em L do
tamanho da minha, se eu quase nunca recebo? Eu não tenho tanta planta, tanto
móvel e tanto gato assim. Pois é... No que apareceu um comprador, tratei logo
de pesquisar outro lugar pra viver. Acho que li Danuza Leão demais sobre como é
bom simplificar a vida. Danuza, pai, aquela insan... deixa pra lá! Enfim, meu
querido, me aguarde que, de repente, tô batendo à sua porta. Festa no interior!
Manda um super beijo pra Lorena e pros meninos. Te amo! Fica bem, paizinho.
Sim, meu querido, eu juro que também vou ficar...
(OLHANDO FIXAMENTE PARA O ESPELHO)
Quando é que a gente aprende a mentir pros
pais? (PAUSA) Acho que no mesmo dia em que a gente começa a mentir pra nós
mesmas... (MUDANDO O ASTRAL) Mas levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima
bonita! (CORRIGE, BEM RÁPIDO)
Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima.
(SENTA-SE NO BANQUINHO. SEMPRE QUE ISSO
ACONTECE, É COMO SE ELA TRANSPUSESSE A PAREDE E DIALOGASSE – OU MONOLOGASSE –
COM A PLATEIA. NESSE MOMENTO, A LUZ PODE MUDAR SUTILMENTE, COMO UMA LICENÇA
POÉTICA NUM CONTEXTO REALISTA. ENQUANTO FALA, ELA TIRA A TOALHA DA CABEÇA E
COMEÇA A ESCOVAR OS CABELOS)
Meu nome é Dulce Luísa Penteado Garbanna.
Não sei em que momento minha mãe escolheu Dulce Luísa. Acho que foi num happy
hour. Pra ela, não pra mim! Sempre usei Luísa Penteado até porque, vamos
combinar... Dulce Garbanna seria meio pretencioso e eu nem sou tão apegada à
moda assim. Não a roupas em geral, quanto a sapatos... Aiii, sapatos são
filhos. Gêmeos!
(OLHA PARA AS CAIXAS PERFEITAMENTE
ORGANIZADAS NA GRANDE SAPATEIRA ESTILO ESTANTE E PARA OS OUTROS TANTOS PARES
ESPALHADOS PELO CLOSET).
Acho que vai ser mais difícil do que eu
imaginei... escolher no máximo trinta pares pra levar. Ainda não sei que
critério vou usar na escolha... Pensei até em abrir um Excel!
(CALÇANDO UM PAR DE SALTOS ALTOS) Por que
mulher é assim? De onde vem essa loucura por sapatos, né? Um belo salto
realinha a coluna, levanta o bumbum, empina os peitos... acontece uma mudança física mesmo, estão
vendo? (FICA EM POSIÇÃO ELEGANTE, COM A CABEÇA LEVANTADA, OLHAR AO LONGE)
Um bom sapato... é uma lipo!
Por que Marylin conseguia andar daquele
jeito sexy? Porque ela calçava perigosos pares de Salvatore Ferragamo, meu bem!
Esse é o poder de um sapato!
Eu não sei se acontece com toda mulher, mas
pra mim, cada sapato que eu comprava era como se eu estivesse adquirindo uma
nova personalidade. Era praticamente um avatar: a poderosa, a romântica, a
aventureira, a despojada.
Homem não entende isso, não é? Acham um
exagero porque, pra eles, basta ser confortável. Eles se viram com 5 ou 6
modelos na vida: um social preto, aquele que serve pra casamento, batizado,
missa, um marrom café mais esportivo, dois pares de tênis, uma sandália de
couro e um chinelo de dedo. Ah! E um sapatênis! Eu desprezo sapatênis, pode ser
super confortável, meus amigos adoram, mas acho que não existe nada pior para
os pés. Ah, existe sim: Crocs! E são raros os que sabem escolher a meia certa
para cada sapato! Basta não estar furada que está ótimo!
Se o homem soubesse como reparamos no que
eles calçam! Ele pode estar inteiro de Ermenegildo Zegna, mas se os sapatos
estiverem fora do tom, ele é um maltrapilho, coitadinho! Eu lembro que eu
adorava acompanhar os desfiles de 7 de setembro e juro que, se os soldados
estivessem nus, eu nem repararia, porque eu não tirava os olhos daquelas botas...
Tão brilhantes... Ah, botas, que poder! Coisa de mulherzinha, né?
Sabe como eles poderiam entender o fascínio
que um sapato exerce sobre nós? Falando a linguagem deles: carro! Racionalmente
o carro é só um meio de transporte e, quanto mais econômico, melhor, certo? Pra
eles não! Detestam carro 1.0, só compram se faltar grana para um mais potente.
Falando em potência, é isso o que
eles compram!
Assim como a gente não compra sapato, e sim
autoestima, eles compram poder, segurança, status...
E os cuidados com o carro? Passam horas
lavando, polindo, passando o “pretinho” nas rodas... Pretinho? Cuidado Dulce
Luísa, se alguém tira esta frase do contexto, você é processada!
Mas voltando aos homens e suas paixões por
carros... Vocês já viram a cara deles olhando um modelo novo? Igualzinho a
gente olhando sapato na vitrine. O valor pode ser bem diferente, mas a paixão é
a mesma. E não basta olhar, eles têm que entrar no carro, trocar a marcha,
arrumar o espelho, passar a mão no banco... (MALICIOSA) pegar no câmbio! Vai me
dizer que isto é racional? Tá bom.
Num salto, toda mulher se acha. Ela cresce,
em todos níveis! Igualzinho ao homem num carrão: o queixo se pronuncia, a
sombrancelha sobe, o peito estufa... um pavão!
No final, o que queremos mesmo é atrair o
sexo oposto. E vamos assumir que o objetivo final é se-xo! Cento e cinquenta
anos de terapia tinham que me adiantar em algo, né? Cada um escolhe sua arma:
nós, os sapatos; eles, os carros.
(CAMINHA ATÉ A SAPATEIRA, PASSA A MÃO NAS
CAIXAS DE SAPATOS)
Ah, se estas armas falassem... Mentira, não
são armas... quer dizer, só aqueles de salto altíssimo que nos obrigam a andar
como uma gueixa equilibrista, aqueles que os ortopedistas reprovam, que dão
calos horrorosos, que faz a podóloga sentenciar poderosa: “É algum sapato seu que está fazendo isso, você tem que descobrir qual
é e se livrar dele!” Hãn hãn. Ela não tem ideia de quanto eu paguei por
cada um destes instrumentos de tortura que me dão tanto prazer quando eu os
tiro. E eu não tenho a menor tendência masoquista, imaginem... Mas no que ela
insiste pra que a gente se livre do sapato, o que a gente faz? Se livra da
podóloga.
Vamos combinar que cada sapato traz uma
lembrança, não é? Faz a gente reviver momentos, felizes, tristes, são parte da
nossa história.
É... eu sou mais do que uma compradora compulsiva de sapatos, eu sou uma colecionadora. Com todo o requinte que essa palavra traz. É isso. Mas agora eu tô preparada pra me desfazer de parte desse passado e zerar total. Vou me transformar numa nova pessoa! Ai, tá bom, estou exagerando, não é bem assim... mas é quase!
É... eu sou mais do que uma compradora compulsiva de sapatos, eu sou uma colecionadora. Com todo o requinte que essa palavra traz. É isso. Mas agora eu tô preparada pra me desfazer de parte desse passado e zerar total. Vou me transformar numa nova pessoa! Ai, tá bom, estou exagerando, não é bem assim... mas é quase!
E eu sou uma colecionadora com TOC, assumo.
Vêem isso? (MOSTRA AS CAIXAS) Cada caixa tem uma etiqueta, com o local da
compra, o ano e o preço. Vejamos esse!
(ELA PEGA UMA CAIXA, ABRE E TIRA UMA
SANDÁLIA VERMELHA E COMEÇA, VAGAROSAMENTE, A CALCÁ-LA ENQUANTO FALA)
Na verdade, na época da novela... 78, 79...,
eu era bem pequena, tinha uns 8, 9 anos e minha mãe, pra variar, implicava
comigo por eu querer ver. Pra ela, criança assistir novela, na época da
censura, onde uma garota de 18 anos, a Vera Lúcia da Lídia Brondi namorava um
quarentão desquitado, o Hélio do Reginaldo Farias, era o fim da picada. Afff,
que memória a minha, não?
Minha mãe me mandava pro quarto e ficava
com meu pai na sala assistindo TV. Meu pai fingia que lia o jornal, mas adorava
um novelão. Eu descia do meu quarto, bem sorrateirinha e deitava ao lado da
poltrona que ficava perto da porta da sala.
Meu pai bem que percebia, mas fingia não me
ver. Devia achar graça da minha petulância em querer enganá-los. Minha mãe
sentava no sofá bem de frente para TV e não via mais nada além da novela.
Lembro que quando vi a tal sandália
vermelha eu pensei na hora: “taí o que eu
vou usar na formatura do colégio: uma sandália idêntica!”
(JÁ COM AS SANDÁLIAS, LEVANTA-SE E DANÇA
ALGUNS SEGUNDOS. OUVE-SE ALGUMAS NOTAS DE “DANCIN´DAYS”, COM AS FRENÉTICAS OU
OUTRA MÚSICA DISCO)
Acho que essas meninas foram o primeiro
objeto de desejo da minha vida. Eu não tinha ideia do que vestiria na
formatura, mas o que calçaria eu não tinha a menor dúvida. E pouco me importava
se elas sobrevivieriam à moda. Essa também foi também a minha primeira
promessa, a mim mesma, aos 8 anos de idade.
Quando chegou no último ano da colégio,
minha mãe já começou a estressar com o vestido porque ela queria um modelo tipo
princesa, com sapato forrado igual ao tecido do vestido, uma coisa meiga! E eu,
no alto da rebeldia dos 17 anos, queria ir de smoking preto com a tal sandália
vermelha e as meias coloridas de lurex. Isso já era vintage na época. Se ornava
ou não, pouco me importava. Na minha cabeça, ir vestida daquele jeito era uma
questão de atitude!
Brigamos muito, argumentei que era a minha
festa de formatura e não a dela! Adiantou falar? Claro que não. No fim, o
argumento dela era mais forte: ela estava pagando. E ia mandar fazer o vestido
de formatura que ela sempre sonhou... com o sapato forrado do mesmo tecido!
Eu fiquei tão puta, mas tão puta que falei
que ia provocar um acidente só pra não ir à formatura, que ela ia gastar o
dinheiro dela à toa, que eu ia picotar o vestido inteiro... enfim, fiz todas as
ameaças possíveis, mas ela estava decidida e mãe quando decide alguma coisa,
esquece. Pode descer Cristo em pessoa, cheio de argumentos divinos, que não
adianta. Mãe é uma espécie à parte na natureza.
Então, ela escolheu o vestido, que era uma
réplica de um que a Lady Di usou num baile. Um rosa claro, com decote que
deixava os ombros à mostra, meia manga e um scarpin baixinho, da mesma cor. Era
assim que a minha mãe tinha imaginado a minha formatura.
No final, para ela não me atormentar por
mais 15 anos com esta história, eu acabei aceitando e, por fim, devo admitir
que o modelo era até bonitinho e foi muito bem feito.
Mas não pensem que eu me deixei ser
totalmente dominada! Não... uma mula aquariana com ascendente em escorpião e
sol em touro é teimosia em dose tripla!
Como vocês podem imaginar, ela nem tomou
conhecimento da sandália vermelha, que eu tive que mandar fazer por minha conta
e risco. Isso sim foi uma aventura!
Guardei minha mesada por meses e pedia que
me dessem dinheiro de presente de aniversário. Aí fui escondida com uma amiga
até um sapateiro que fazia sapatos sob encomenda. Paguei em parcelas, conforme
ia juntando dinheiro.
Minha mãe, coitada, mandou forrar um sapato
com o mesmo tecido do vestido rosa, ah que doce... Só usei para sair de casa,
pois quando chegou no auditório onde aconteceu a formatura, eu tirei o
sapatinho careta e coloquei minhas maravilhosas sandálias. E, no momento mais
importante, aquela hora de pegar o canudo, lá estava eu, vestida de princesa e
aquela sandália vermelha gritando no palco! Meu pai jura que minha mãe quase
enfartou na plateia, que seu coração perdeu alguns compassos, ainda mais quando
minhas tias exclamaram: “Ué, nunca vi Lady
Di usando isso...”
Ao fim da cerimônia, minha mãe já estava
mais conformada. Meu pai sabiamente resumiu: “Deixa a menina usar o que ela quer, a formatura é dela e o vestido é
longo mesmo, pouco vai aparecer...”
Então, mesmo na hora do baile, eu permaneci
com as sandálias, ainda que tenham ficado escondidas a maior parte do tempo, só
o fato de eu saber que elas estavam nos meus pés, me segurando, me suportando,
me dando apoio, junto àquelas meias, que abraçavam e coloriam meus tornnozelos,
me deu uma sensação de independência, de ser dona do meu nariz, sabe? Tipo “vocês pensam que mandam em mim, mas no fim
eu faço o que eu ‘querer’ da minha vida!” (DÁ UMA SONORA GARGALHADA)
Episódio me ensinou uma coisa: a promessa
que a gente tem que pagar é aquela que a gente faz pra gente mesmo!
Filosófica, não? (ZOMBANDO DE SI MESMA).
Vocês acham que eu vou guardar estes bebês por causa disso? Nã, nã. Eu vou
guardar porque eu acho fashion e estou bem a fim de cair numa balada bem anos
80. Só preciso achar uma nova meia de lurex igual àquela da novela.
(ENQUANTO OUVE-SE “DANCE BEM, DANCE MAL,
DANCE SEM PARAR. DANCE BEM, DANCE ATÉ SEM SABER DANÇAR...” ELA GUARDA SUAS
SANDÁLIAS VERMELHAS E ACHA OUTRAS, PRETAS!)
Ah, meu Deus! Olha quem está aqui. Esses
scarpins foram testemunhas do adeus à minha virgindade... Sério.
Quer dizer, eu nem sei se ele beijava bem
mesmo ou eu é que não tinha nenhum padrão de comparação! A verdade é que,
quando conheci o Leo... Leopoldo, eu me encontrava meio preocupada. Já estava
com 16 anos e nada. Eu ainda não havia menstruado. Vocês ouviram bem: eu não
estive menstruada até os 16 anos!
Achava que tinha algo errado comigo, pois
todas as minhas amiguinhas já se sentiam mulherzinhas e falavam o tempo todo
sobre isso e usavam seus modess aderentes à calcinha enquanto eu me sentia um
verdadeiro macho! Eu tinha vergonha de falar sobre isso com elas e
definitivamente minha mãe jamais tocaria em qualquer assunto um pouco mais
pessoal comigo, a não ser que fosse para me criticar: isso ela fazia muitas
vezes e como ninguém!
Quando, finalmente, veio... eu senti o
primeiro grande alívio da minha vida e pensei: “Dulce Luísa, teu nome é mulher!” Isso fez com que eu aceitasse as
carícias mais ousadas do Leo. Eu estava naquele momento de ruptura: romper barreiras,
romper limites, romper hímens e resolvi aceitá-lo não apenas como minha
primeira boca mas como meu primeiro homem.
Eu e Leo nos conhecemos no ginási... no
segundo grau, éramos colegas de classe. Ele era uma graça, do tipo super
inteligente e tal e tinha resolvido que iria me conquistar, me namorar, me
possuir. Ele ficou uns meses pra conseguir me arrastar pra uma cama. Apesar de
eu achá-lo bonitinho, eu não tinha muito tesão nele. Sabe, eu acho que as
pessoas que te atraem se dividem em dois grupos: as que você quer ser e as que
você quer ter. O Leo... bem, se eu fosse homem, eu gostaria de “ser” ele; mas
como mulher eu não tinha muita vontade de “ter” ele, entendem? Mas eu já me
sentia atrasada o suficiente na escala de garotas modernas e resolvi liberar de
uma vez, sendo ou tendo...
Ele me levou pra jantar. Mais bebemos que
comemos e lá fomos nós para a prometida noite de amor, entrega e sexo! O grande
problema é que Leo, tão caxias, estava todo preparado para me impressionar...
Ele deve ter lido em alguma velha revista “Nova” que toda mulher a-do-ra preliminares... E com...
“coisas”.
Eu já estava peladinha e, a seu pedido, de
olhos fechados quando senti na minha boca um... morango! Pensei: OK - Leo - Sessão da Tarde - “Nove Semanas e
Meia de Amor”. Vamos nessa! Confesso que me deu uma vontadezinha de rir,
mas me mantive. A noite tinha que ser especial, afinal eu era virgem!!! Depois
do morango, veio o chantilly. Eu disfarcei e fingi que engoli, mas eu estava de
dieta e nem por um cassete eu ia ficar pelada e gorda! O Leo pedia que eu
continuasse de olhos fechados e, tal Jeannie diante de seu amo, assim o fiz.
A coisa foi evoluindo, evoluindo, mas
quando eu senti aquele champanhe gelado sendo jogado na minha barriga quente e
já suada, quase tive um choque anafilático. Com o susto me levantei
bruscamente... morango pra todo lado... e aquele champanhe escorrendo pelos
meus cabelos. Ahhhhhhh, nããããooo!!! Me
tire a virgindade mas não estrague minha escova.
Daquele minuto em diante, nada mais deu
certo! Ele tentou me chupar, tentou que eu chupasse ele, alisou meus peitos, me
botou deitada de costas e eu só pensava em ir embora! Esse episódio serviu pra
me mostrar que não, não seria o Leo! Apesar de eu gostar bastante dele, não era
a hora, nem o lugar, nem o champagne: a brochada foi geral!
Demorei mais alguns meses pra transar pela
primeira vez. Entre o Leo e o Zé Carlos, que efetivamente entrou com a
mão-de-obra barata e fez o serviço sujo, eu lembro que a minha relação com o
sexo sempre foi meio hortifrutigranjeira...
(PERCEBE O QUE DISSE, SE SENTE MEIO
RIDÍCULA E, COMO UMA MOLECA, COMEÇA A NARRAR RAPIDAMENTE O ACONTECIDO, NUM TOM
DE VOZ MAIS BAIXO)
Eu pegava uma maçã, cortava ao meio,
dava-lhe umas cavoucadas e a beijava, imaginando como seria usar a língua. Eu
tentava me apaixonar pela maçã! Nos momentos de excitação eu costumava pegar
uns legumes... sabe, uns pepinos, uns nabos, fechar os olhos e imaginar que eu
tocava um homem bem excitado! Meninas, vocês já fizeram isso? Uma vez botei uma
banana-da-terra enorme dentro da minha calcinha e fiquei alisando aquilo por
horas... imaginando que eu seria possuída pelo homem mais bem dotado do mundo!
Hoje eu acho que, às vezes, dependendo do homem, comer a banana te dá até mais prazer...
Enfim, a primeiríssima vez que estive com o
Zé Carlos – e não foram muitas – eu estava usando esses scarpins. Acho que
saímos pra jantar, pra ir ao cinema, nem lembro mais, estava tão excitada com a
ideia que não via a hora de chegar no motel. O Zé foi super delicado como
convinha e eu poucas vezes na vida me senti, apesar de um certo receiozinho
pela primeira vez, muito poderosa! Depois de alguns vinhos e beijos eu resolvi,
sabe-se lá porque, não tirar os sapatos. Ainda não entendo como eu pude
saracotear pelo quarto, pelada, só com uma taça nas mãos e os sapatos nos
pés...
Confesso que tirar a roupa pela primeira
vez na frente de um homem nem foi lá tão traumático assim, mas continuar com os
sapatos me mantiveram com os pés no chão. Mesmo estando com as pernas no ar!
(RI MALICIOSA) Até hoje, quando faço amor – mais eventualmente do que eu
pretendia - ficar sem eles, os sapatos, é o que me dá a sensação de total nudez
e alguma vergonha! Céus, como sou estranha!
(COMEÇA A SEPARAR CAIXAS, PEGA UNS ÚLTIMOS
CABIDES E COLOCA NUMA MALA. DE REPENTE, AO ABRIR UM COMPARTIMENTO QUALQUER DE
SEU ARMÁRIO, ENCONTRA UMA CAIXA COM SEU VESTIDO DE NOIVA EMBALADO. ELA O TIRA
DA CAIXA E SE EMOCIONA. RI UM POUCO DE SI MESMA E COMENTA)
Por quê isso sempre emociona uma mulher,
não? (PAUSA. ELA COMEÇA A VESTI-LO) Por quê eu nem lembrava mais que o tinha
guardado? Por Deus, por quê o guardei, já que o casamento em si já tinha ido pro
saco há tanto tempo? Por quê será que a gente pergunta coisas demais?
(VESTIDA, PEGA UMAS FLORES NUM VASINHO,
POSICIONA-SE NO MEIO DO PALCO COMO SE FOSSE ADENTRAR A UMA IGREJA. FOCO DE LUZ
FECHADO NELA)
No meu casamento eu queria usar alguma cor
nos sapatos. Não sei... vermelho, azul... Eu sempre achei que ia ficar um
escândalo quebrar um pouco a coisa do tudo-branco-total. Seria minha forma
individual de dizer que eu sou igual a todo mundo porque estava casando – apesar de não ser todo mundo que se casa mas
esse é outro papo - e, ao mesmo tempo, dizer que eu era algo diferente - embora usar um sapato diferente não
signifique que a pessoa seja realmente diferente e isso nem é tão importante
assim, também é assunto pra outro papo...
A verdade é que, de noiva-escândalo, eu não
tive nada... o escândalo mesmo ficou por conta... da minha mãe, que começou a
ter uma crise, falando a altos brados para todos na sala de prova: (IMITANDO A
MÃE, NUM SÓ FÔLEGO) “Tem que ter
sapato branco, o vestido é branco, tudo é branco, a ocasião pede branco...”
O fato do casamento ser meu, o sapato ser
meu, o pé e o gosto serem meu não queria dizer absolutamente nada pra ela.
Muito bem... Casei com os sapatos brancos, como ela queria e a sociedade queria
e a porra da tradição toda queria...
(MUDA O TOM) Minha vingança veio anos
depois. No dia de seu enterro. Apesar de eu ter acompanhado de perto toda sua
doença e drama e dor e tudo... No velório fui devidamente vestida de preto,
como certamente ela me recomendaria. Usei um vestido de tafetá preto, bem acinturado,
com um certo volume na altura dos joelhos, uma coisa chic bem anos 50. Preto...
todo! Mas usei meus sapatos brancos; os mesmos sapatos do meu casamento. Sei
que foi uma vingancinha boba da minha parte. Sabia também que era a primeira
vez na vida que minha mãe não ia reclamar. (IMITANDO A MÃE) “Enterro é de preto porque a roupa pede
preto e a ocasião pede preto e tem que ser tudo preto...”
OK, mamãe,
mas meus sapatos não eram! (PAUSA) Será que eu ainda os tenho? (PROCURA.
ACHA UM PÉ. ENQUANTO PROCURA O OUTRO, CONTINUA)
Me lembro que a vida toda, cada vez que eu
me sentia com medo ou envergonhada, desambientada ou intimidada de qualquer
maneira eu olhava pra baixo. Minha mãe criticava: “Você não tem postura / Uma mulher olha pra frente, pra adiante, pro
alto / Que mania você tem de ficar olhando pro chão / Cabeça baixa é sinal de
fraqueza, mocinha, medo de encarar as pessoas, a vida...”
O que ela não sabia é que, no fundo, em
qualquer situação de pânico eu olhava pros meus sapatos, eles eram os
companheiros que me levavam e me apoiavam vida afora... os dois... eles eram
meus amigos, estavam lá pra mim, pra não deixarem que meus tocassem esse mundo
tão cruel... Mas a imagem da minha mãe sempre me dizendo “pra frente, pra adiante, pro alto / pra frente, pra adiante, pro alto”
me dói. Logo ela que, no seu maior momento de depressão voou abaixo por tantos
andares.... (PAUSA. UMA LÁGRIMA. NOTAS DE PIANO) Mãe... Tadinha! Até de sua
aspereza tenho saudades!
Que estranho! Nunca um pé ficou separado do
outro. Não no meu closet. (INICIA UMA BUSCA QUASE INSANA PELO OUTRO PÉ DE
SAPATO ENQUANTO TEORIZA) Pares são importantes. Não entre duas pessoas, mas
entre sapatos sim. Uma vez o salto de um Labotin quebrou e eu tive que separar temporariamente
os dois pés. Que sofrimento! Enquanto não voltou o pé do conserto, eu me senti
uma paraplégica. Exagero? Vocês não me conhecem...
(NÃO ENCONTRA O OUTRO PÉ. RESMUNGA E
DESISTE. JOGA O PÉ DE SAPATO QUE ESTÁ EM SUA MÃO NO LIXO E COMENTA) Dane-se. Se
nós dois não estamos mais juntos porque a droga dos sapatos têm que estar?
(CHECA AS HORAS) Meu Deus, o tempo está
passando, eu tenho que decidir quais vou levar, quais vou jogar, quais vou
doar... Minha Santa Micaela!
(CONTINUA SUA BUSCA. NESSE MOMENTO, OUVE-SE
UMA CHAMADA POR SKYPE. ELA VAI ATÉ O APARELHO QUE PODE SER O PRÓPRIO CELULAR OU
SEU TABLET OU AINDA O NOTEBOOK... É SUA MELHOR AMIGA)
DULCE - Va-dia!
AMIGA - Lou-ca!
DULCE - Pegou meu recado?
AMIGA - Peguei, né? Quer dizer que você vai
mesmo praquele dois-quartos?
DULCE - Sim.
AMIGA - O do Jardins?
DULCE - Sim, tô indo. Já tá quase tudo
arrumado.
AMIGA - “Quase”, vindo de você... não deve
estar NADA arrumado!
DULCE - Bonita, você não me conhece mesmo,
né? Apesar dos 100 anos de amizade... Fique sabendo que, neste momento, estou
finalizando a escolha dos pares de sapatos que vou levar. O resto já está tudo
encaixotado.
AMIGA - A louca do sapato vai deixar algum
par pra trás? Me engana...
DULCE - Como diria Zarathrusta, Sêneca...
ou Marília Gabriela, não me lembro bem,
“all we need is less”. Vou levar 30 pares, não mais.
AMIGA - Dos 300 que você tinha? Tá.
DULCE - O mesmo número de homens que você
dispensou só no ano passado.
AMIGA - Tô super acreditando. Vai fundo,
colega!
DULCE - Verdadíssima. O resto vai pra
doação.
AMIGA - Tá boa? Se eu chegar no novo apê e
encontrar apenas 30 pares de sapatos no seu closet, nunca mais transo na vida!
DULCE - Ahahaha... O mundo não merece tanto
esforço! Te prepara pra inaugurar minha cozinha nova com seu bobó, tá meu bem?
AMIGA - Já tô de avental, mulher. Bem... se
precisar de ajuda, amiga, grite. Alguém há de aparecer... (AS DUAS RIEM)
DULCE - Beijos.
AMIGA - Outros.
(DESLIGAM. DULCE CONTINUA MEXENDO NAS
CAIXAS. ABRE UMA DELAS E PEGA OUTRO PAR)
Gente, olha estes aqui! Que boas
recordações eles me trazem! Estes eu comprei em Nova York para a minha
entrevista de emprego. Não, não, eu não fui trabalhar em Nova York, eu... Eu
estava num momento “ano sabático”. Sabe aquele período em que você está
desempregada, mandou curriculum pra tudo que é lugar, avisou pra todo mundo que
você está “disponível para o mercado de trabalho”?
(REPETE, MAIS DEVAGAR) Disponível para o
mercado de trabalho. Gente, esta definição é meio perigosa. Imagine a conversa
com aquele gato que você acaba de conhecer:
-
Onde você trabalha?
-
No momento, eu estou disponível para o mercado de trabalho.
-
Ah, tá disponível, é? (FAZ
GESTO COMO SE FOSSE O CARA MEDINDO-A DE CIMA A BAIXO E SE COLOCANDO COMO SE O
CORPO DELE FOSSE O MERCADO DE TRABALHO) Prazer,
Mercado de Trabalho!
Ai, olha como eu sou dispersa? Continuando
a história... Como eu estava falando, eu estava desempregada e a Natália, minha
prima que morava em Nova York, me convidou para passar um tempo com ela.
Mesmo com a grana contada, eu sempre
namorava as vitrines daquelas lojas ma-ra-vi-lho-sas! E eu me lembro até hoje o
dia em que vi estes meninos na vitrine, acenando pra mim. Eles me olhavam como
se gritassem do outro lado do vidro: “Mommy, mommy, tire-nos daqui, nós a
amamos” (RI DE SUA PRÓPRIA TOLICE)
Parecia cena de filme. Sabe quando tudo
fica em slow-motion, preto-e-branco, seu olhar fica fixo, você nem pisca? Foi
assim mesmo, só faltava aparecer um câmera-man girando em volta de mim com o steadycam (IMITA O MOVIMENTO. TALVEZ
AQUI UMA “FOTO CÊNICA”, UM MOMENTO COM LUZ, FOCO NO SAPATO, UMAS NOTAS
MUSICAIS. COISA RÁPIDA)
Mas imaginem o preço do resgate! Eu sabia
que só em sonho mesmo ou por um milagre eu os teria pra mim (PERCEBE QUE ESTÁ
COM ELES NA MÃO E COMENTA, OLHANDO-OS). Mas o destino falou mais forte, né
filhotes?
O que aconteceu não foi bem um milagre.
Quando cheguei no apartamento, minha prima avisou que minha mãe tinha ligado avisando
que havia marcado uma entrevista de emprego pra mim.
Oi? Como assim? Tinha marcado uma
entrevista de emprego pra mim, no Brasil, sem me consultar, sem saber se eu
queria aquele tipo de emprego? Quando retornei a ligação ela me falou que
ligaram de uma empresa pra onde eu havia mandado currículo antes de viajar, perguntando
se eu poderia ir a uma entrevista na outra semana e ela disse que sim.
Eu, que sempre detestei que a minha mãe
tomasse as decisões por mim, dei meu braço a torcer e agradeci. Afinal, era a
empresa onde eu sempre quis trabalhar, desde que saí da faculdade e ela sabia
disso.
Ela vi que ela estava tão empolgada quanto
eu e, num momento “canalha”, aproveitei e falei que tinha visto um sapato lindo,
perfeito para a entrevista, mas que era meio caro e que eu não tinha grana
naquele momento. Na hora ela liberou o cartão para eu comprar. Algum tempo
depois, junto com o meu primeiro salário, chegou a fatura da mamãe me cobrando
pelo “presente” (OLHA PARA OS SAPATOS E COMENTA) Vovó sabia ser cruel!
Naquela loja, ao experimentá-los e me olhar
no espelho, eu tive certeza que aquela vaga era minha. Eu me senti muito
poderosa, muito linda, muito tudo. Uma Gisele na passarela. Assim mesmo!
No dia da entrevista eu, nervosa, chamei um
táxi e fui conversando com o motorista pra relaxar. Ele me contou que era
formado em administração de empresas, tinha chegado a diretor de vendas numa
empresa e um dia, sem mais nem menos, foi demitido. Pra amenizar, seu chefe
falou que sentia muito, que tinha sido muito difícil tomar aquela decisão, que
ele era muito competente, confiável, responsável... sabe aquele papo “o problema não é você, sou eu”? Pois é,
foi mais ou menos assim.
Na época, ele tinha 50 anos e ficou
completamente sem chão, coitado. Foi um baque e tanto!
Ouvir aquilo quando eu estava indo para
minha primeira entrevista de emprego não foi nada animador, mas eu estava tão
preocupada com o meu futuro que não liguei muito pra essa história. Além do
mais, aos 23 anos parece que nunca chegarmos aos 50. A gente nem pensa que
podemos passar pela mesma situação ou então, imaginamos que aos 50 estaremos
milionários!
Enquanto eu me checava ao espelho pela
enésima vez, ele me contou que tinha certeza que ia se aposentar naquela
empresa, afinal foram 20 anos vestindo a camisa, cuidando como se a empresa
fosse dele, sabe aquela pessoa que se dedica mesmo? Pois é, era ele. Adiantou
alguma coisa? Nada.
Quando chegamos ao destino, ele disse para
eu ir sem medo, pois eu estava vestida de um jeito clássico, mas que com aquele
sapato eu mostrava uma dose de ousadia que era exatamente o perfil que eles
procuravam naquele departamento.
Eu fiz aquela cara de “oi?” e ele disse que
o legal de ser motorista era conhecer pessoas interessantes e aprender com
elas. E um de seus passageiros era um estilista, que contou como conseguia analisar
rapidamente uma mulher só em olhar seu figurino.
E ele sabia sobre o perfil que procuravam
naquele departamento, porque aquela era a empresa que ele havia trabalhado. Ele
só percebeu quando chegamos ao ver a placa na entrada, porque na época dele a
empresa ficava em outro endereço.
Gente, qual a probabilidade???
Naquele dia eu senti que estava com sorte.
Sim, este fator conta e muito. Ninguém fala isso, né? A gente só escuta que é
preciso ter dedicação, paixão, persistência que a gente consegue o que quer.
Mas sem essa coisa chamada sorte, acaso, estrela na testa, rabo pra lua, seja
lá como quiserem chamar, sem isso não adianta, meu bem! Isto é que faz a gente
estar no lugar certo, na hora certa com a pessoa certa. E no meu caso com o
sapato certo!
Eu fui tão confiante, mas tão confiante
para a entrevista que consegui a vaga e fiquei lá por muito tempo. E ficaria
mais se não fosse uma chamada Mrs. Roselyn Walters, a poderosa-mór! Sim, chegou uma hora que eu perdi a paciência e
falei tudo que estava engasgado, foi uma catarse. É impressionante como algumas
pessoas conseguem se manter no emprego mesmo sendo incompetentes e “do mal”,
ainda por cima.
Que ironia me lembrar disso hoje, quando
estou passando pela mesma situação que o seu Nicodemos passou. Nicodemos, nunca
me esqueci do nome dele... eu achei o nome tão diferente que ele virou a senha
do meu computador: Nicodemos1076, que era o número da minha casa.
Só que o seu Nicodemos foi demitido quando
tinha 50 e eu estou com 39... tá, 39 ponto 8! Mas foi melhor ser demitida
agora, poucos meses antes dos 40. Faz uma diferença enorme, não é apenas um ano
que separa estes dois números, são quase 10! Sabe aquela coisa do psicológico?
É isso.
Por exemplo, quando você vê na vitrine
aquele sapato lindo de viver e ele custa 499,90, você se apega no 99,90? Claro
que não. Aliás, qualquer coisa que termine com 99,90 a gente fala só o começo,
já perceberam? Se alguém pergunta quanto custou, a gente fala: uns 400 e pouco,
uns 500 e pouco, uns 600 e alguma coisa...
Com idade é a mesma coisa, enquanto não
arredonda a gente só lembra o começo: “ah, ela deve ter uns 30 e poucos”, tanto
faz se é 31 ou 39, ainda estamos na faixa dos 30. Mas quando arredonda é um
baque! A gente se conscientiza que lá se foi uma década. Leva mais ou menos uns
2 anos pra nos acostumar com o novo patamar.
Sabe, este sapato me deu tanta sorte, que
estou até pensando em usá-lo na minha próxima entrevista de emprego. Ele ainda
me cabe muito bem. Isto também é um dos motivos pelos quais eu sou louca por
sapatos: é um acessório democrático. Não importa se você é do tipo mignon ou
está com uns quilinhos a mais. Ele te faz sentir um mulherão.
(COLOCA O SAPATO E VAI EM DIREÇÃO A
SAPATEIRA PARA VER OUTRAS CAIXAS. PEGA UM PÉ DE SAPATO. O DIREITO)
Ué, cadê o par desse? Que porre juntar pé
com pé! Algum analista mal intencionado diria que eu tenho séria dificuldade em
manter minhas pernas unidas... Péééé, cadê você? (PROCURA UM POUCO)
Ahhh, tô lembrando porque só tenho este pé,
guardado... O direito. Eu estava enlouquecida de alegria por, finalmente,
viajar com meu pai. Só nós dois. Era uma época de férias e minha mãe estava
super envolvida com algum projeto pra salvar a natureza, as baleias ou
sei-lá-o-que... Meu pai estava particularmente animado pra fazer uma viagem
mais longa e foi mamãe quem sugeriu que a fizéssemos juntos. Até estranhei, ela
sempre quis estar à frente de qualquer coisa...
Papai já havia comentado sobre sua vontade
de conhecer a Turquia, um dos poucos lugares que ainda não conhecia. Ele sempre
foi de grandes viagens. Às vezes em que deixou Rio Preto era pra fazer valer a
pena. Ele sempre foi assim: ansiava pelo grande, pelo distante, pelo
desconhecido. Mas, ao mesmo tempo, amava seu mundinho: sua cidade, seu povo, o
time do Rio Preto Esporte Clube...
(SE DÁ CONTA QUE MUDOU DE ASSUNTO)
Voltando, poucos dias antes da gente viajar, torci o pé bobamente numa calçada
perto de casa e caí no chão como uma fruta madura. Fiquei louca, gritei,
chorei, esperneei. Achei que havia quebrado o maldito pé e que minha viagem com
papai havia dançado. Lembro até de ter “meio que” amaldiçoado minha mãe: “foi muito fácil ela apoiar isso, algo tinha
que dar errado...” Total histeria da minha parte porque, no pronto socorro,
me falaram que não era nada grave. O médico me colocou uma dessas botas cheias
de velcro e, dias depois, eu poderia tirá-la eu mesma e continuar minha
vidinha. De vez em quando, a gente faz um drama como ninguém, né?
Enfim, saí do Brasil charmosamente
manquitolante, com o pé esquerdo deste par num pé e a tala no outro. Ao
contrário do que eu imaginei, o mundo não acabou e, quatro ou cinco dias
depois, já estava tudo normal.
(BEM ENTUSIASMADA) Eu estava em Istambul,
na Turquia, com meu pai, numa viagem só nossa, feliz como uma virgem em
lua-de-mel e, ainda, longe da minha mãe falando quatrocentas palavras por
minuto, todas elas reclamativas. Eu estava no céu! Juro que teria feito a
viagem toda só num pé como um Saci, e ainda estaria feliz!
A viagem foi assim: conhecemos três lugares
bem diferentes da Turquia. Até porque a Turquia já é um país atípico, por ficar
parte na Ásia e parte na Europa. OK, a maior parte fica na Ásia e acho que só
uns 30% na Europa.
Primeiro, Ankara, a capital. Lembro que
visitamos muitos museus. Muitos! Confesso que nunca fui muito chegada, falha do
meu caráter, mas achei um museu mais bacana que o outro. Lembro também de ter
ido a um aquário fantástico com um túnel de vidro sob onde a gente passava,
dando a impressão que estávamos no fundo do mar, com os peixes nadando ao nosso
redor. Pirei. Parecia que eu tinha fumado unzinho!
Depois, Istambul, um verdadeiro luxo!
Palácios deslumbrantes, mesquitas incríveis... visitamos umas oito... Em
qualquer uma das mesquitas, os homens ficam de um lado e as mulheres do outro,
coisas da religião! Ainda sinto no rosto a mistura de sol e brisa enquanto
passeávamos de barco pelo Mar do Bósforo! Ah, que dia inesquecível! E a comida?
E os doces? Comi kilos de halawi (LÊ-SE “RALÊU”), sabe aquele doce feito de
gergelim e tahine que mais parece madeira aglomerada? Gor-da!!!
E os homens turcos? Aliás, o paraíso dos
homens sem barriga! Um dia, num taxi, olhei para o motorista e ele era tão absurdamente
bonito, com uns olhos tão profundamente azuis, tipo capa da Vogue, que só não
falei “me faça um filho” porque meu
pai estava junto... (RI DE SI MESMA)
UAU, falando sobre homens me bateu que já
faz tanto tempo que não saio, não namoro, não transo que, daqui a pouco, a
prefeitura vai colocar um bloco de concreto pra interditar a área!
(MUDA O TOM) E, por fim, a Capadócia. Um
lugar totalmente cenário. Uma cidade esculpida nas rochas. Lá enfrentei meus
dois maiores medos num único dia. Primeiro, a altura. No comecinho da manhã,
andamos de balão. Sabe aqueles super coloridos que a gente vê nos postais,
vários voando lado a lado, parece que um vai bater no outro? Eu, toda trabalhada
na acrofobia, sempre tive pavor de altura, mas meu pai me convenceu: “Filha, se não for hoje, quando vai ser? Se
você se negar isso, provavelmente nunca mais vai tentar entrar num balão. Olha
que dia lindo, vamos nessa!” Fui e a-mei!
À tarde, meu segundo medo foi vencido:
encarar lugares fechados. Nunca me imaginei, rainha da claustrofobia, descendo
pela cidade subterrânea da Capadócia. Eram andares cavados terra abaixo onde,
lá no princípio dos tempos, os cristãos moravam para se refugiar de seus
inimigos. Um enorme labirinto de cavernas interligadas, sem nenhum acesso à luz
do sol. Incrível imaginar que o povo vivia lá, morria e era enterrado em seus
aposentos... Um lugar fenomenal, mágico!
(OBSERVA NOVAMENTE O PÉ DE SAPATO EM SUA MÃO)
Ô, paisinho, que
viagem foi aquela? Provavelmente a gente nunca mais vai ter tempo de repetir
isso, né? (PAUSA) Ahhh, que
bom que rolou. Eu lembro de você tão feliz também! (TRISTEZA) Quem te vê hoje
não diz... Um homem pra quem o mundo inteiro já foi tão pequeno faz sua Rio
Preto hoje parecer tão grande! Será que viver é isso? É correr atrás do milhão
pra, no fim, valorizar o centavo? E finalmente perceber que sua vida cabe numa
casa, num quintal, numa caixa de sapatos? (FALA ENQUANTO COLOCA O PÉ DO SAPATO
NUMA CAIXA E A FECHA. PAUSA) Tô ficando psicológica! (RI)
Às vezes eu me pergunto se viver longe de
suas pessoas fundamentais vale tanto a pena assim. Eu sempre inventei mil
desculpas pra mim mesma, posei de heroína vencedora em cada foto mas acho que
vivo longe do meu pai porque não suportaria vê-lo perdendo seu viço, sua verve,
envelhecendo, indo embora... Excesso de amor, às vezes, afasta!
(PEGA UM PAR DE SANDÁLIAS, DO TIPO
RASTEIRINHAS)
Ahhhhhh! Este aqui é o primeiro par de
calçados que eu guardei. Eu tinha 16 anos e estava voltando do colégio quando
vi o veterinário entrando em casa. Corri, pois sabia que era por causa do
Duque, nosso vira-lata de 15 anos.
Quando entrei, o Duque estava deitado na
soleira da porta da cozinha e o Marcel, nosso veterinário, sentado ao lado dele
acariciando suas costas.
Minha mãe estava trazendo uma manta que era
minha quando eu era criança. Ela colocou a manta sobre o Duque e, quando eu
cheguei perto, ele virou a cabecinha e olhou pra mim. Era como se ele estivesse
falando que iria sentir saudades de todas as tardes que passamos juntos, de
todas as nossas travessuras.
Passou um filme em fast na minha cabeça...
Eu comecei a me lembrar do tempo que ele ficava do meu lado na sala enquanto eu
assistia TV, quando brincava no quintal e minha mãe nem se preocupava porque
sabia que ele estava tomando conta de mim, quando a gente corria em volta da
casa brincando de pega-pega, quando ele roubava a comida de cima da mesa e ia
comer escondido embaixo do carro do meu pai, quando ele fugiu e apavorou todo
mundo na rua, porque era grande e forte... mas ninguém sabia que ele era um doce,
incapaz de morder alguém!
O Duque era como se fosse o meu irmão mais
velho, foram 15 anos. Ok, eu sei que o César Milan diz que cachorro é cachorro,
vaca é vaca e humano é humano, mas sabe... este era o Duque, o meu companheiro
de todas as horas. Ele ia até a escola comigo, entrava na sala de aula e
tudo... Na época, eu queria matá-lo, até fingia que nem o conhecia, mas ele
ficava deitado ao lado da minha carteira o tempo todo.
As professoras e a meninada toda gostava dele
e faziam a maior festa. Lembrando agora, as aulas ficavam com um astral mais
tranquilo, ele transmitia calma pra todo mundo... parece exagero, mas é
verdade!
Só quem teve ou tem um cachorro ou um gato
sabe o que é este amor que a gente sente. Como não amar um ser que sempre te
escuta? Aliás, só escuta, não fala nada! Mas, mesmo não falando nada, fala
tanto...
Não te critica, não te julga, não tenta
botar panos quentes, só fica lá, quietinho ao seu lado, ouvindo o seu desabafo
e te olha de vez em quando como quem diz: eu sei que depois você vai repensar
tudo que você está falando e vai se arrepender de algumas coisas, mas pode
confiar em mim porque eu não vou contar pra ninguém e nem te jogar na cara depois...
Isso é importante! Porque as pessoas podem
não te retrucar na hora, mas elas não perdem a oportunidade de te jogar na cara
o que você falou. E jogam, muitas vezes com um prazer maligno.
Então, quando ele deitou a cabecinha dele
nos meus pés, naquele final de tarde, com o sol se pondo, eu revivi os últimos
15 anos da minha vida em poucos minutos. O Marcel ficava falando pra ele ir
para a luz, que se ele estava vendo a luz, era pra ele seguir aquela luz.
Eu queria matar o Marcel! Porque ele não fazia
alguma coisa? Por que não dava algum remédio, alguma injeção, ao invés de ficar
incentivando o Duque a ir pra maldita luz?
Ali eu aprendi que o melhor, às vezes, não
é como a gente quer que seja, mas como deve ser. E assim foi... Ele olhou pro
sol se pondo, suspirou e fechou os olhos... Ele se foi de um jeito tão suave
que eu aprendi que a morte é isso: é ir pra luz, assim, como se a gente
caminhasse por uma praia tranquila, pisando uma areia morninha...
E eu me lembro que pensei: eu vou guardar
estas sandalinhas enquanto eu viver, porque aqui (COLOCA A MÃO NA PARTE DA
FRENTE DAS RASTEIRINHAS) o Duque deitou pra ver a luz e ir embora.
Sabe? Muita gente me critica quando eu falo
que amei tanto um cachorro, que amo os bichos. Dizem que tem tanta criança
abandonada, precisando de carinho. Eu sei, eu entendo, eu admiro quem adota,
mas me faltam duas coisas fundamentais que toda boa mãe tem que ter: desapego e
paciência. Definitivamente eu perdi essas duas filas.
(OLHA PARA AS SANDÁLIAS EM SUAS MÃOS) Essas
vão como uma lembrança, para uma caixa especial, em nome do Duque, que está no
lugar mais quentinho do meu coração.
(GUARDA-AS NUMA LINDA CAIXA, CHEIA DE
ENFEITES E A COLOCA CUIDADOSAMENTE EM SUA MALA)
Sabe, aquele ano foi muito triste. Depois
do Duque, em um só mês perdemos a prima Livia, o primo Berto e o tio Giorgio.
Foi tão punk, que um dia eu falei pra Deus,
assim, de homem pra homem: “Tudo bem, o
Senhor tá chamando. OK. Quer chamar, chama. Afinal o senhor é o Senhor! Mas,
pelo menos, me manda um sinal que eles vão ficar melhor aí, ok?”
Eu tenho que pensar que o céu é um lugar
melhor. Sem poluição, congestionamento, fila no metrô, contas a pagar, funk...
Tudo limpinho, orgânico, ecológico... Terraço gourmet, wi-fi poderoso, tudo bem
touchscreen...
(DE COSTAS PARA O PÚBLICO CONTINUA SUA
ARRUMAÇÃO ENQUANTO FALA) Como será o céu, hein? Muita gente acha que ele nem
existe. Mas eu gosto de pensar que é um lugar bacana, acolhedor, cheio de
anjinhos...
(NESTE MOMENTO, ELA PÁRA. VÊ-SE QUE ELA
SEGURA UMA PEQUENA CAIXA. OUVE-SE ALGUMAS NOTAS MUSICAIS DE UM PIANO DISTANTE.
LENTAMENTE, SENTA-SE NO BANQUINHO)
- Meu anjinho...
(DULCE ABRE A CAIXA E TIRA UM PAR DE
PANTUFINHAS DE BEBÊ)
Ahhh, que pititico... Ganhei da Dona Gê,
mãe do meu melhor amigo e praticamente uma mãe pra mim também. Eu vivia na casa
deles!
Sabe essas fases em que você é obrigada a
lidar com a perda? Uma atrás da outra? Ninguém te pergunta nada: se você pode
aguentar, se você está afim... Teu coração dói. Você chora, grita, se desepera
mas parece que o “cosmo” não tá nem aí pra você.
Eu estava grávida de 2 meses e meio quando sofri
o aborto. Isso foi 2 meses antes do Duque ir embora. Ainda lembro da Lívia,
minha prima, dizer: “Vê como são as
coisas? Se o Duque tivesse morrido antes, iriam falar que você perdeu o bebê de
tão abalada que ficou com sua morte!”
Eu jamais poderia imaginar que era a última
vez que eu estava vendo a minha prima...
Isso foi a única coisa que eu guardei do
enxoval do meu beb... (INTERROMPE-SE. RESPIRA. CONTINUA)
Eu me casei uma única vez. Humberto era o
nome dele. Era não, ainda é. Não foi assim um grande marido, mas foi um belo
companheiro. Nem durou muito o casamento, a gente preferiu continuar amigo.
Enquanto estávamos juntos, pensamos muito se a gente ia ter filhos ou não. Acho
que isso já era um sinal que a gente não tinha coragem suficiente para encarar
a parada. Porque pra ser pai e mãe você precisa de muita coragem. Ou então
nenhuma!
O meu limite era a idade. Eu sabia que,
quanto mais velha, mais difícil seria pra mim e pro bebê. Então, quando eu fiz
33 decidimos que ou a gente encarava ou desencanava de vez.
Decidimos encarar, mas confesso que ficava
com uma ponta de alívio quando chegava a menstruação. No fundo, eu tinha medo
de ser mãe, ou de não ser uma boa mãe. E se meu filho viesse com algum problema
de saúde?
Quando engravidei, esse medo se misturou à
alegria e a um monte de outras sensações novas. Aí a vida da gente é fazer
planos. Como será a vida do bebê e como será a vida da gente depois do bebê? Porque
se tem algo que muda tudo é a chegada de um filho. Ah, muda mesmo!
E, num passe de mágica, a gente já tá se
sentindo pai e mãe. Tudo gira em função dele. Escolher o nome é uma questão
mundial, internacional, interplanetária. Depois de dezenas de listas e
pesquisas e sugestões e debates e noites em claro, a gente finalmente decidiu.
O mundo podia respirar aliviado: Laura se fosse menina e, se não fosse, João
Lucas. Laura por ser o nome daquela música linda, um jazz gostoso que tocava
num filme de Hollywood do mesmo nome, da década de 40. E João Lucas porque eu
sempre gostei de nome duplo e queria que ele tivesse nome de santo, como fala
aquela música do Legião. É, ia ser um bebê muito musical!
Quando contei a novidade pra minha amiga
Ju, ela falou que era melhor esperar 3 meses antes de contar pra todo mundo.
Que, antes disso, o risco de um aborto natural é muito grande, que é preciso
ver se a gravidez vai "vingar". “Ai
que bobagem, Ju. Eu já contei pra todo mundo!”
A cada dia que passava eu me sentia mais
mãe e o medo diminuía. Eu passava a mão na barriga, que nem aparecia ainda, e
falava com o bebê. Eu me lembro que eu dirigia conversando com ele, falava onde
a gente tava indo, onde a gente tava passando, o que a gente ia fazer. O bebê
começou a fazer parte de mim e da nossa rotina.
Então, um dia, aconteceu. Eu estava na sala
e de repente senti como se estivesse fazendo xixi. Corri pro banheiro e não
consegui segurar... Eu vi aquele sangue, como se fosse a menstruação e então
percebi que tinha perdido ele... Eu sabia. Eu senti isso. Sozinha em casa, saí
do banheiro e fui pro quintal. Era um fim de tarde ensolarado! Eu me sentei no
chão, olhei pro céu e comecei a chorar. Chorar e pedir desculpas. Desculpas
para o meu bebê por não ter sido forte o suficiente para segurá-lo junto a mim...
eu chorei muito. Quando me acalmei, liguei pro Humberto, que estava viajando.
Coitado, ele não sabia o que fazer, como me acalmar e nem tinha como voltar pra
casa. Mas eu falei pra ele não se preocupar que a minha irmã estava vindo e me
levaria ao médico... (PAUSA)
Não houve necessidade de nenhum
procedimento. E como tudo estava bem no começo nem deu pra saber se seria a
Laura ou o João Lucas. O tal médico, tadinho, me disse para eu não me sentir
culpada, que eu não tinha feito nada de errado, que era comum a primeira
gravidez não vingar e que eu deveria continuar tentando. Eu senti naquele
momento que eu não tinha coragem suficiente para ser mãe.
Voltei pra casa e comecei a telefonar pra
todo mundo. É, a Ju tinha razão, era muito triste comunicar que eu não ia mais
ter um bebê.
Eu e o Humberto decidimos desistir e, se a
gente se arrependesse mais tarde, teríamos que conviver com este arrependimento
porque não íamos mais pensar nisso. (OLHA A PANTUFINHA) Eu sempre contei pra
mim mesma que Deus mandou meu bebê para um lugar muito mais legal. (GUARDA A
PANTUFINHA NA CAIXA COM TODO O CUIDADO. ENQUANTO DULCE FALA, ELA ACABA DE SE
ARRUMAR)
Depois de alguns anos, de muita terapia,
conversa e leitura sobre o assunto, eu entendi que este filho não precisava
necessariamente ser um filho mesmo. Do tipo carne-e-osso! Poderia ser algo que
saísse da minha imaginação, uma outra espécie de criação, talvez um lance de
arte, uma carreira, um projeto, uma coleção... (FAZENDO GESTO DE CONTEMPLAÇÃO
DE SEU CLOSET)
Por exemplo, um closet-sapateira poderia
representar meu filho. SIM!!! Eu cuido, eu sustento, eu acarinho... (COM HUMOR)
Ok, nesse momento eu estou dando alguns para adoção, mas é por uma boa causa.
Mamãe ama a todos sem muita distinção, ouviram? Ok, mamãe está fazendo distinção
entre alguns de vocês mas eu nunca disse que mamãe era perfeita!!!
(FAZ UM BRINDE COM UM PÉ DE SAPATO) Um
brinde a todos os meus filhos! Eu olho para esses sapatos e quase posso ouvir a
voz deles. Cada um tem uma personalidade, um encanto único, algo pessoal... O
QUÊ?
(PEGANDO UM PÉ DE ALGUM SAPATO E FALANDO
DIRETAMENTE COM ELE) Como assim, eu deixo vocês trancados aqui e os revezo nos
passeios? Este closet é praticamente um útero: não bate sol mas é quentinho! (PEGANDO
OUTRO PÉ) Como assim, vocês só têm os ácaros como amiguinhos? Eles podem fazer
mal, mas pelo menos não te criticam!
(PEGA UMA BOTA TIPO CHACRETE E CONVERSA COM
ELA)
E você, hein? Tem coragem de dizer que eu
te mantenho trancada como se aqui fosse um cativeiro? Pois fique sabendo que eu
só não te exponho tanto lá fora porque não é em todo lugar que você é bem vinda...
Ouviu, Rita Cadillac?
É isso, só cobranças e mais cobranças. (FALANDO
A TODOS OS SAPATOS) Vocês nunca vão me dar o devido valor... Acham que sou
louca porque, mesmo morando sozinha, cada vez que quero falar algo mais particular no celular eu venho pro closet. O
quê? Sim, vocês têm razão: é como se aqui vocês me protegessem do mundo lá
fora. Como? É claro que, pra mim, vocês são meus maiores confidentes. Esse meu “pequeno” apego a vocês,
meus calçados, deve ser alguma coisa da minha infância. Nenhum de vocês estava
lá, mas eu tive que usar botinha ortopédica, sabiam? (PRA SI) Será que ainda
existe isso hoje em dia? Parecia um par de Fiats Uno bem pequenos! Claro que
odiava aquilo, com seis anos eu já sonhava com salto Anabela. Quando eu ouvia
“Ortopé, Ortopé, tão bonitinho!” me vinha sangue nos olhos, me dava um teto preto,
um desejo enorme de matar ou morrer. (RI) Dramática!!!
(SUBITAMENTE, OLHA O RELÓGIO) Meus deuses,
olha a hora! Eu tenho que acabar de separar estes sapatos, fechar uma ou outra
caixa na cozinha, me vestir, me pentear, ficar bonita pra encarar o primeiro
dia do resto da minha vida. E, diante de tamanha responsabilidade, eu me
pergunto: com que sapato eu vou dar o próximo passo? (ESCOLHE UM, SE ARREPENDE,
VOLTA, TROCA E DECIDE-SE POR OUTRO. CALÇA-OS)
Eu me prometi: só 30 pares. (PAUSA) 35.
(PAUSA) Ok, 40 no máximo! Estes vão... (CONTA MENTALMENTE ENQUANTO OS GUARDA NA
CAIXA) 2, 4, 6... Estes também (SEPARA-OS) 38, 39...
(DEIXA À VISTA 3 PARES. OLHA, PEGA UM, PEGA
OUTRO, COMPARA, HESITA ENTRE OS 3. TEMPO. MÚSICA SE INICIA E VAI AUMENTANDO
GRADATIVAMENTE. DECIDE-SE POR UM PAR E O COLOCA NA BAGAGEM)
...40, OK. 40 é um bom número. Prontinho!
(DEIXA OS DOIS PARES QUE NÃO LEVARÁ PRÓXIMO
AO PROCÊNIO. OLHA BEM PARA ELES, COM DIFICULDADE EM DEIXÁ-LOS. OLHA PRA TODO O
QUARTO COM CERTA EMOÇÃO, SE DESPEDINDO. O CLOSET QUASE VAZIO ESTÁ RELATIVAMENTE
ARRUMADO E AS COISAS QUE DULCE LEVARÁ ENCONTRAM-SE JÁ PERTO DA PORTA. DEPOIS DE
UM MOMENTO, ELA COMEÇA A COLOCAR SUAS COISAS PARA FORA DO QUARTO)
Muito bem, apê querido, apezinho meu, tô
indo. Fique bem! Seja feliz. Receba bem os novos moradores, tá? E nunca se
esqueça de mim...
(LENTAMENTE, PEGA SUA BOLSA E SAI. A LUZ
VAI DIMINUINDO, MAS UM FOCO DE LUZ BRILHA NOS DOIS PARES QUE FICARAM NO
PROCÊNIO. DULCE VOLTA UM MOMENTO APÓS E “RESGATA” UM DOS DOIS PARES QUE HAVIA
DEIXADO, COMO QUEM PENSA “NÃO POSSO VIVER SEM ESTE!”. NOVAMENTE SAI. MOMENTO
MAIOR, MÚSICA AUMENTANDO DE VOLUME. ELA VOLTA MAIS UMA VEZ, “RESGATA” O ÚLTIMO
PAR E SAI, VITORIOSA! FADE OUT)
- F
I M -
Texto registrado sob n# 5054/17
Ministério da Cultura / Fundação Biblioteca Nacional / Escritório de Direitos Autorais
Carlos Fariello
|
Babhy Yabico
|