NA PORTA DE UM APARTAMENTO, ENTRE UM NOIVO (ARNALDO), AO SOM DA MARCHA
NUPCIAL EM RITMO DE RAP.
ARNALDO:
Entra... Ah, não. Não vai me dizer que você vai querer entrar no colo, vai? Eu
te conheço bem. Eu sei que essas convenções sociais não fazem sua cabeça...
Entra, vamos.
ENTRA O OUTRO NOIVO (ARMANDO), MEIO ENFURECIDO.
ARMANDO:
Você podia ser um pouco mais delicado, né, Arnaldo? Tudo bem que eu não seja
realmente chegado a tais convenções. Ma eu ainda sou um romântico. E do tipo
que ainda manda flores!
ARNALDO:
Ai, meus pobres pés... Casar cansa! Faz um cafezinho, faz, amor.
ARMANDO:
Vai começar, patrão? Eu é que to cansado. Fim de ano letivo, defesa de tese,
Natal, reveillon, casamento... É demais para um ser humano!
ARNALDO: E
quem é que fez questão de se casar no dia primeiro de janeiro? Eu?
ARMANDO:
Eu sempre sonhei com isso: entrar de noiva... noivo, numa igreja num primeiro
de janeiro para contrair laços matrimoniais. Eu quis marcar, marquei.
ARNALDO:
Ah, mas marcou mesmo!
ARMANDO:
Dia mundial da paz. Não soa bem?
ARNALDO:
Férias, Armando. Faltou metade dos convidados.
ARMANDO:
Tia Aurora tava lá!
ARNALDO:
Tia Aurora, que completa 400 anos na semana que vem.
ARMANDO:
Mais respeito com Tia Aurora, Arnaldo. Ela é uma célula-mater, matriarcar de
toda uma família. Uma verdadeira... Hebe. Linda, loura, toda ela em bege. E,
afinal de contas, são só 90 anos!
ARNALDO:
...Que eu não vou estar lá para comemorar!
ARMANDO:
Era só o que faltava. Imagine eu, um recentíssimo casado, comparecer a uma
festa de família sem o marido. Eu, que desculpa eu ia dar?
ARNALDO:
Que nós nos divorciamos!
ARMANDO:
Pois é bem o que vai acontecer se você não for. Além do mais, Arnaldo, é o
mínimo que você pode fazer para eu tentar esquecer do que aconteceu hoje.
ARNALDO: O
que? O casamento?
ARMANDO:
Não, Arnaldo. A pausa interminável que você deu antes do “sim”. Eu já estava
praticamente simulando uma convulsão. Você vai comigo ao aniversário da tia
Aurora, sim! O que eu iria falar pra ela se, por acaso, ela telefonasse?
ARNALDO:
Alô?!
ARMANDO:
Ar-nal-do!!!
ARNALDO:
Ela é muito chata, Armando. Uma perua velha, uma Kombi. Eu detesto o tipo que,
enquanto fala, amassa o cabelo só pra ficar fofo. É uma coisa tão... Tônia.
Além do mais, meia de varizes usa você, meu amor. Porque ela só usa Dantele e
só fala de si na terceira pessoa. Eu definitivamente não to podendo.
ARMANDO:
Cada vez eu você fala, Arnaldo, eu tenho a nítida sensação que o metrô passou e
eu perdi o trem.
BLACK OUT. EM OFF OUVE-SE: “DUAS SEMANAS DEPOIS...”
ARNALDO:
Eu só tenho 32 anos e já tenho que decidir minha profissão. É um pouco cedo
demais pra eu saber o que quero ser quando crescer, não é não, Armando? Eu
adoro medicina, mas aquele hospital tá me matando...
ARMANDO:
Eu tava pensando em adotar uma criança. Já temos duas semanas de casados. Tá
todo mundo perguntando por quê, até agora... nada. Começo de ano, vida nova...
um filho cairia muito bem.
ARNALDO
(com um convite na mão):
Mais um evento da tia Aurora. Eu tenho a sensação que essa velha passou cada
dia de sua vida fazendo... nada.
ARMANDO:
Eu não tô mais agüentando o estado desta casa. Eu sei que você vai dizer que
pintura, mobília nova são coisas secundárias, mas eu não vou querer que o meu
filho viva num lugar como este. Tudo é tão pequeno. A samambaia de metro tem 10
centímetros. O jardim do prédio só tem bonsai.
ARNALDO:
Eu queria tentar uma coisa nova este ano. Sei lá. Um novo emprego. Quem sabe
agora eu não me demita e abra finalmente o meu consultório?
ARMANDO:
Sabe que eu fico imaginando que carinha ele iria ter? A quem ele iria puxar:
você ou eu?
ARNALDO:
Eu... peço pra me mandarem embora, pego meu Fundo de Garantia e adeus! Eu
queria ver a cor que a cara deles ia ficar...
ARMANDO:
Verde, bem clarinho, nas paredes. Eu queira uma hidro. Sou louco por uma hidro.
Sabe que estive pensando que a gente podia inverter os azulejos do banheiro? Em
vez de azulejos do chão até a metade da parede, a gente podia colocar os
azulejos da metade da parede até o teto. Assim, conforme a gente fosse pintando
de cores diferentes a primeira metade, o banheiro ia parecer novinho em folha.
Grande idéia!
ARNALDO:
90 anos... É muita tia Aurora pra pouco sobrinho. Tia Aurora... Aquele cabelo
oleoso... Ela deveria usar modess nos ombros!!! Esse ano eu juro que não
apareço na festa da velha...
ARMANDO:
Eu fico pensando no nome do bebê. Às vezes eu tenho um pesadelo em que ele já
nasceu há anos e a gente ainda não se decidiu por um nome. Uma criança sem nome
não pode. Vamos ficar chamando ele de “coisinha”? De “ô”...? Ah!!! Eu não quero
que meu filho fique conhecido por “ô”!
ARNALDO:
Do quê você está falando, Armando?
ARMANDO:
Do quê você está falando, Arnaldo?
ARNALDO:
Eu tô falando de emprego, profissão, grana... Bom dia!!!
ARMANDO:
Sabe que é mesmo? Eu nunca pensei que, um dia, eu fosse gastar tanto dinheiro
num super? O caixa ia registrando e eu pensando: “Meu Deus! Eu pensei ter
colocado tão pouco no carrinho... De onde saiu isso tudo?”
Na hora da conta, de novo: “Meu Deus! Com esse
total dava pra comprar dois sons novos, ou 75 Cds ou então um TV 29
polegadas...”
Sim, porque daqui a um mês nenhuma dessas compras
existirão mais!
ARNALDO:
Armando!!! A gente precisa comer!!! Ninguém vive de televisão!!!
ARMANDO: Eu
vivo!
NOVO BLACK OUT. NOVO OFF: “MAIS DUAS SEMANAS...”
ARMANDO:
Ai, que ressaca...
ARNALDO:
Já acordou?
ARMANDO: A
parte superior da minha cabeça, sim. Mas o resto do corpo está definitivamente
morto.
ARNALDO:
Você não me parece tão mal.
ARMANDO: É
verdade. Um mês de casados hoje, Arnaldo. Parabéns pra mim, que tenho levado
adiante esta relação. Nós não mudamos nada! Nem de roupa! Não reparou nada de
diferente em mim?
ARNALDO:
Não...
ARMANDO:
Estou usando um novo umectante.
ARNALDO:
É. Você parece bem úmido. Eu estava pensando...
ARMANDO:
Não me diga! Pensar nunca foi seu forte.
ARNALDO:
Por que será que em filme americano tem sempre alguém que chega de táxi, na
chuva e sai do carro para pagar a corrida? Por que não pagam antes de sair?
Ainda por cima sempre dizem: “Fique com o troco!” Bem, os cents americanos
valem tão mais que os centavos de Real...
ARMANDO:
Vivemos felizes. Desencanei de ter filhos. Eu não daria uma boa mãe... pai?
Além do mais, eu preciso manter esse meu corpinho. Desisti do filho, mas meu
novo sonho de consumo é uma geladeira, daquelas enooooooormes, 4 portas, toda
ela digital. Geladeira... Sabe que eu adoro geladeiras? Quer eletrodoméstico
mais independente?
ARNALDO:
Outra coisa que incomoda profundamente em filme americano é que sempre que
pinta um enjôo, um mal-estar, a criatura corre pro banheiro, senta no chão e
cai de boca no vaso sanitário. E abraça o vaso como se fosse uma amante. Será
que privada americana não tem nem um microbiozinho?
ARMANDO:
Americano se embebeda de Pinho Sol. É um povo viciado em Diabo Verde... (pegando um convite na correspondência)
Hellooooooooo!!! Convite pros 90 anos da tia Aurora.
ARNALDO: O
que? Tô fora! Tia Aurora, hummm, na primeira vassoura ela sai voando, aquela
acabada...
ARMANDO: O
que você esperava, que ela se tornasse uma paquita?
ARNALDO:
Olha só esse convite. Que mania essa gente tem de não usar trema. O trema já
foi inventado, sabia? Todo mundo teima em não usar trema. Como ficaria
cinqüenta, quatorze, Quênia, agüentar – sem trema: fico tão irritado com isso!
ARMANDO:
Deleta esse discurso que eu não tô editando. Aliás, ultimamente você só
reclama. É todo um Procon. Ontem a noite pensei que você fosse ter uma crise
histérica.
ARNALDO: É
porque não existe nada mais broxante do que disparar o alarme do carro 17
andares abaixo e você, no meio do amor, ouvir...
ARMANDO:
Amor? Quem é que está falando em amor, Arnaldo? Aquilo não era amor. Era
obrigação de maido e mulher, marido e marido...
ARNALDO: O
eu você ta querendo dizer exatamente, Armando?
ARMANDO:
Nada, Arnaldo. É que definitivamente a gente é muito diferente um do outro.
ARNALDO: E
o que te faz pensar assim?
ARMANDO: O
seu dejejum, Arnaldo. Café-com-leite-pão-e-manteiga é comum demais pra eu
agüentar às 7 da manhã.
ARNALDO:
Você jamais está de pé às 7 da manhã, Armando. A essa hora você acabou de ir
pra cama.
ARMANDO:
Eu nasci pra granola com mel; iogurte com cenoura; café preto, forte e
avantajado... eu um bom mamão-macho.
ARNALDO: E
tudo com Zerocal por causa da dieta que você começou no dia em que nasceu?
ARMANDO:
Eu não quero falar sobre isso agora. Eu estou meio tonto e sem cinta.
ARNALDO:
Tonto, claro... Consome Lexotan como se fosse pipoca!
ARMANDO:
Você tenha um pouco mais de respeito pelas pessoas, Arnaldo. Pelo menos as que
ainda estão sem uma camada de pan-cake. Além do mais, existe alguém nessa sala
viciado em pasta de dente Close-up. E esse alguém não sou eu.
ARNALDO:
Por falar em vício, também não sou eu quem esquece a dosagem, a bula e se
entope de Voltarem.
ARMANDO:
Eu estava com dores nos ossos. Tava me sentindo fraco. Eu tinha ido doar
sangue. Você sabe que eu tenho problemas em relação a isso. Mas Doutor Marido
inisite. Diz que é bom para a saúde. Eu abstraí, doei o sangue e saí tomando um
Danoninho.
ARNALDO:
Oh, Armando! Deus te criou no sétimo dia!
ARMANDO: O
que você quer dizer com isso?
ARNALDO:
Era a folga!
ARMANDO:
Olha. Tu não pegas pesado, que me baixa o gaúcho. Eu sempre tento ser o mais
razoável entre nós dois.
ARNALDO:
Então feche essa porta e ligue o gás. Quer saber? Cansei! Eu tô indo embora,
Arnaldo. E pra sempre!!!
ARMANDO:
Você não me deixaria aqui... Só...
ARNALDO:
Compre um cachorro.
ARMANDO:
Muito só...
ARNALDO:
Compre dois.
ARMANDO:
Pode ir. Eu não vou chorar.
ARNALDO:
Ta sem rimel a prova d´água?
ARMANDO:
Não me faça desaforo, Arnaldo, que o laço vai rodar.
ARNALDO:
Eu sei que posso encontrar alguém melhor. Eu não posso mais com você, com o
diabo da tia Aurora... Na sua família, ninguém me agüenta.
ARMANDO
(cínico):
Sabe que eu não entendo essa gente?
ARNALDO:
Mas quando alguém novo passa a me conhecer, acaba me amando.
ARMANDO:
Sabe que eu não entendo essa gente?
ARNALDO:
Tem muita coisa que me irrita em você.
ARMANDO:
Mas amar é jamais ter que pedir perdão.
ARNALDO:
Você chama o garçom como se fosse motorista de táxi. GARÇOM...
ARMANDO:
De fato, Arnaldo. Eu não vejo saída pra nós dois. Aliás, vejo: a porta da rua,
que, aliás, é serventia da casa!
ARNALDO:
Você sempre teve talento para o abismo.
ARMANDO:
Ora!!! Finja ter algum caráter um vez na vida e diga quando eu tenho razão.
ARNALDO:
Não tenho escolha.
ARMANDO:
Me perdoa?
ARNALDO:
Não tenho certeza.
ARMANDO:
Me liga?
ARNALDO:
Não tenho fichas.
ARMANDO:
Muito bem... Adeus, Arnaldo. Isso não tava funcionando mais.
ARNALDO:
Eu vou pegar minhas coisas.
ARMANDO:
Eu mando entregar.
ARNALDO SAI. CLIMA.
ARMANDO:
Acabar com o casamento... Coisa de hétero!
-FIM-